Hoje em dia, a cultura nerd ganhou o status de mainstream. Antes de os cinemas serem fechados, as salas eram lotadas com adaptações de histórias em quadrinhos e novos capítulos da saga Star Wars.
E a realidade não será diferente quando as salas reabrirem.
Projeções atuais mostram que os cinemas serão reservados para filmes grandiosos (como filmes de super-heróis), enquanto filmes menores chegarão direto no streaming.
Ou seja, ao que tudo indica a cultura nerd ficará cada vez mais forte. E o fã dessa cultura (aquele que contribui para o sucesso desses filmes) continuará sendo referenciado e reverenciado.
Mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo, o nerd foi relegado a um papel coadjuvante e estereotipado, normalmente sendo mostrado como aquele que apanha do bully da escola. Agora, isso mudou.
Com o sucesso de filmes de super-heróis e de seriados como The Big Bang Theory, a cultura nerd atingiu um novo patamar.
Mas antes de produções da Marvel dominarem os cinemas e o Sheldon dominar a TV, houveram outros esforços que se preocuparam em apresentar uma representação mais positiva da cultura nerd.
Diferente de filmes como A Vingança dos Nerds, que também reforçavam os estereótipos relacionados a esta cultura, obras como O Balconista, de Kevin Smith, foram no caminho contrário.
O filme de Kevin Smith representa um esforço em inserir esta discussão para além da barreira do estereótipo. O Balconista foi importante nesse movimento de mudança, mas não seu esforço não foi único.
E foi pensando nisso que eu separei uma lista com alguns dos filmes que, na minha opinião, lideraram esse movimento ressignificação da cultura nerd, em uma época em que esta não era a abordagem mais comum.
Mas isso não é tudo! Eu também gravei um episódio especial do nosso podcast dedicado a este tema. Mais informações sobre o podcast estão disponíveis abaixo:
Podcast 7 Marte – A cultura nerd no cinema
Caso você prefira me ouvir falar sobre os filmes de maneira mais espontânea sobre os filmes, escute o episódio especial do Podcast 7 Marte dedicado a estes filmes pioneiros na representação positiva da cultura nerd.
Você pode escutar o programa clicando no player abaixo. Também estamos disponíveis no Spotify, Deezer, Breaker, Google Podcasts, RadioPublic, Pocket Casts, Overcast, Apple Podcast e Player FM.
E se quiser escutar mais episódios do Podcast 7 Marte é só clicar aqui. Mas agora chega de enrolação. Vamos para a lista com:
Cinco filmes sobre a cultura nerd
A lista a seguir é apresentada em ordem cronológica e se estende entre as décadas de 1990 e 2000. Alguns desses filmes são um pouco mais difíceis de encontrar, mas eu garanto que eles valem o esforço.
Procura-se Amy (Chasing Amy, 1997, direção: Kevin Smith)
Mencionei antes a importância do filme O Balconista no início dos diálogos acerca da cultura nerd. E, de fato, o filme de Kevin Smith foi muito importante nesse quesito. Ainda assim, a obra referenciou este universo sem colocá-lo em primeiro plano.
Por causa disso, O Balconista não é o representante que eu escolhi para constar nessa lista. Na minha opinião, Procura-se Amy se encaixa muito melhor no tema aqui abordado.
Escrito e dirigido pelo próprio Smith (que também faz uma ponta no filme), Procura-se Amy conta a história de dois quadrinistas que trabalham juntos e mantêm uma amizade há muitos anos.
Certo dia, um deles conhece uma garota (que também é quadrinista) e se apaixona por ela, mesmo depois de descobrir que ela é lésbica. Eles iniciam um relacionamento que acaba comprometendo a amizade dos dois.
O filme mostra eventos como convenções de HQs e é recheado de diálogos que remetem à cultura pop. Não faltam referências à Star Wars e ao universo das histórias em quadrinhos. Os diálogos são extensos e inteligentes (como aquele acerca do racismo de Star Wars).
Mas o que torna Procura-se Amy representativo é o fato de tratar os quadrinistas como seres tridimensionais. Os quadrinhos são uma parte importante das suas vidas, mas suas vidas não giram em torno disso.
Existe muito mais por trás daquelas pessoas além do conteúdo que eles colocam nas páginas. Existem dramas, conflitos, paixões e traições. E o filme faz questão de retratar tudo isso.
Ainda assim, Procura-se Amy sofre de um mal que vai assolar a maioria dos filmes desta lista: a retratação do fã de histórias em quadrinhos como uma figura estereotipada. Mas isso é algo que nem The Big Bang Theory conseguiu escapar.
Free Enterprise (1998, direção: Robert Meyer Burnett)
Outro pioneiro nessa temática da representação nerd, embora bem menos conhecido que a obra de Smith, é o filme Free Enterprise, que tira o foco dos fãs de quadrinhos e o direciona aos fãs do seriado Star Trek.
O filme acompanha dois amigos envolvidos na indústria hollywoodiana que são obcecados pela série clássica de TV. Conforme é mostrado, Star Trek acompanhou esses personagens desde a infância ao ponto de causar vários problemas.
Um deles se envolveu numa briga por ter ido para a escola vestindo uma camiseta da série. Mas, apesar dos problemas, a figura do Capitão Kirk – e, consequentemente, de William Shatner – é vista como uma deidade pelos personagens.
Tudo muda quando eles, de fato, conhecem o ator William Shatner. E pior, eles descobrem que ele é uma pessoa comum, passando pelos mesmos problemas que eles também passam.
Assim como acontece Procura-se Amy, Free Enterprise trata os seus personagens como adultos tridimensionais, como seres falhos cujos problemas se estendem além do seu fanatismo, embora isso seja uma parte integral das suas personalidades.
O filme chega a exagerar em alguns pontos, reforçando constantemente a ideia de que aqueles personagens têm uma vida social e mantêm relacionamentos íntimos. Mas isso parece uma justificativa para mostrar mulheres seminuas.
Apesar dos problemas, Free Enterprise é um bom exemplar da representação da cultura nerd no cinema e merece ser descoberto.
Infelizmente é um filme um pouco difícil de encontrar. Mas eu acho que vale o esforço. Nem que seja para ver William Shatner fazendo piada com a sua própria persona e tentando a sorte como cantor de hip-hop.
Curiosamente, o longa-metragem quase teve uma continuação, após ganhar o status de cult nos Estados Unidos. Mas esse projeto acabou não indo para frente devido a problemas com os financiadores.
Heróis Fora de Órbita (Galaxy Quest, 1999, direção: Dean Parisot)
Também trabalhando com o tema de Star Trek, mas de uma maneira um pouco diferente, o filme Heróis Fora de Órbita dá um passo adiante em relação aos dois longas mencionados antes. Esta é uma obra que trata o fã com respeito e admiração.
A trama acompanha o elenco de uma antiga série de TV, no melhor estilo de Star Trek, que hoje vive às custas da sua fama do passado: eles participam de pequenas convenções e outros eventos para poderem ganhar a vida.
Certo dia, porém, eles são sequestrados por um grupo de alienígenas que acredita que os episódios da série eram registros históricos e verdadeiros. E eles precisam da ajuda daqueles “heróis” para poder enfrentar uma ameaça no seu planeta natal.
Heróis Fora de Órbita brinca muito com a admiração e o fanatismo causado por uma série de TV, mas consegue ser respeitoso.
Existe toda uma subtrama envolvendo os fãs da série e embora eles também sejam retratados de maneira caricata, é o eventualmente o conhecimento deles e o fanatismo deles que prevalece, servindo com um auxílio valioso aos heróis.
Trata-se de um gesto muito respeitoso e representativo da cultura nerd, uma vez que essa cultura não é feita apenas por aqueles que produzem o conteúdo, mas também – e principalmente – por aqueles que o consomem.
Curiosamente, as referências a Star Trek são tão grandes que o filme chega a aparecer em listas de melhores filmes de Star Trek. Inclusive, em algumas listas Heróis Fora de Órbita fica à frente daqueles longas-metragens dirigidos por JJ Abrams.
Vale lembrar que quem faz essas listas são fãs e nesse caso a representação positiva deles próprios pode ter pesado um pouco.
Além da referência, Heróis Fora de Órbita também é um excelente filme, que funciona como comédia e como ficção científica. E tem um elenco estelar!
Corpo Fechado (Unbreakable, 2000, direção: M. Night Shyamalan)
Primeiro filme desta lista a fugir completamente do gênero da comédia, Corpo Fechado, dirigido por M. Night Shyamalan, é pioneiro dentro dos filmes de super-heróis e apresenta, até hoje, uma das abordagens mais originais deste subgênero.
O filme acompanha um segurança que foi o único sobrevivente de um acidente de trem. Após esse evento, ele conhece um sujeito fanático por histórias em quadrinhos que tenta convencê-lo a se tornar um super-herói.
O fã de histórias em quadrinhos, aqui, não tem nada a ver com o estereótipo explorado até então. Ele é mostrado como um sujeito de intelecto superior e bem sucedido, que ganha a vida negociando artes de quadrinistas.
Embora seja vista com descrença pelo protagonista, essa admiração e esse fanatismo acerca da arte é a chave do sucesso do herói. Assim como em Heróis Fora de Órbita, o fã é mostrado como o guardião do conhecimento.
Este reconhecimento das histórias de quadrinhos como forma de arte é essencial à Corpo Fechado, que se propõe a elevar os quadrinhos ao patamar da grande arte, à uma arte que merece ser respeitada.
Isso é refletido no estilo bastante característico do diretor M. Night Shyamalan que misturando elementos do cinema independente e do cinema popular, conseguindo equilibrá-los com maestria.
O filme é pioneiro no subgênero de super-heróis, e foi lançado no mesmo ano de X-Men. Desde então, o subgênero floresceu e dominou a cultura. Tal domínio se refletiu até mesmo na continuação de Corpo Fechado.
Intitulada Vidro (2019), a continuação trouxe os personagens de volta numa tentativa de “marvelizar” o universo criado por Shyamalan. Foi um sucesso de bilheteria, embora tenha entregue um produto genérico, no melhor estilo daquelas produções na qual se baseia.
Ainda assim, isso não apaga a importância que Corpo Fechado teve para a representação da cultura nerd.
Fanboys (2009, direção: Kyle Newman)
Em alguns aspectos, este Fanboys pode ser visto como um oposto de Free Enterprise, uma vez que direciona seu olhar aos fãs de Star Wars. Mas assim como Free Enterprise, este filme mantém a mesma admiração divina em relação ao seu objeto de fanatismo.
A trama se passa no final da década de 1990 e acompanha um grupo de amigos que atravessa o país com o intuito de invadir o Rancho Skywalker e roubar uma cópia do então inédito Star Wars: Episódio 1 – A Ameaça Fantasma.
O filme mostra a expectativa gerada em torno daquele lançamento, que marcaria o retorno de George Lucas à franquia, dirigindo uma história original. Vemos as discussões acaloradas dos fãs que, próximos da estreia, acamparam do lado de fora dos cinemas.
Não importa que o Episódio 1 seja considerado pela maioria dos fãs como o pior episódio da saga. O foco de Fanboys não é a qualidade do filme em si, mas o impacto que a obra de George Lucas tem na vida das pessoas.
Isso é representado na figura de um dos personagens, um doente terminal que deseja ver o filme antes de morrer. A jornada serve, portanto, como reaproximação dos amigos e como a realização de um último desejo.
E isso vai além da ficção. Os episódios mais recentes de Star Wars também tiveram exibições antecipadas para pacientes terminais.
Além disso, Fanboys é um prato cheio para os fãs da cultura, uma vez que conta com diversas participações especiais, envolvendo tanto atores de Star Wars quanto de… Star Trek. O público mais atento também vai notar referências nos diálogos dos personagens.
Não é nenhuma surpresa que o longa-metragem tenha sido escrito por Ernest Cline que, alguns anos depois, lançaria o livro Jogador Nº 1, outra obra envolvendo o fanatismo e a cultura pop.
Conclusão – a representação atual da cultura nerd no cinema
A partir do momento que a cultura nerd se torna mainstream, a personificação da figura do nerd também muda. O fã de quadrinhos, de games ou de super-heróis não está mais deslocado; ele está no centro.
O nerd se tornou o detentor do conhecimento que move a indústria cultural.
Desta forma, a sua representação no cinema também muda. Isso acontece em filmes como Kick-Ass, por exemplo, em que um personagem apaixonado por histórias em quadrinhos resolve ele próprio se transformar em um herói.
E por mais que a sua trajetória seja mostrada através do humor, eventualmente ele passa a ser o objeto de admiração dos outros, tornando-se aquilo que antes estava preso nas histórias em quadrinhos.
Esse heroísmo também é representado no filme Jumanji -Bem-Vindo à Selva, no qual um grupo de amigos é transportado para dentro de um videogame antigo e preciso completar as fases do jogo para retornarem ao mundo real.
Ou seja, é o conhecimento da linguagem do videogame que salva aqueles personagens dos perigos que o cercam. O conhecimento é uma arma importante para a sobrevivência.
E já que mencionei o autor Ernest Cline e seu livro Jogador Nº 1, vale destacar também a adaptação feita para o cinema, dirigida por Steven Spielberg.
Por mais que eu tenha alguns problemas com o filme (conforme mencionei na minha crítica), o longa-metragem também apresenta esse conhecimento como algo necessário ao sucesso dos personagens.
Estes são apenas alguns exemplos. Não é minha intenção ficar mostrando como cada novo filme retrata a figura do nerd. Meu objetivo foi apresentar a longa e árdua jornada trilhada até chegarmos aqui.