Você já ouviu falar da minissérie Lorena? Sabe do que ela trata? Não? Então esse post pode te ajudar.
Talvez você já tenha ouvido falar dessa história, mas não esteja ligando o nome à pessoa. E isso é bastante significativo.
Lançada na plataforma de streaming da Amazon, Lorena é uma minissérie documental sobre um caso muito comentado ao longo da década de 1990: o caso da mulher que decepou o pênis do marido.
Embora eu fosse bem novo na época do ocorrido, lembro de ter visto alguma coisa sobre isso na TV. Lembro também que todas as reportagens eram focadas na figura de John Wayne Bobbitt, a pobre vítima do ataque febril da esposa.
Aliás, “a esposa” ou “a mulher” eram os termos mais usados na época. E, na minha juventude ingênua, eu não entendia o poder desse tipo de generalização. Só compreendi isso muito mais tarde.
Afinal, ao associar a imagem da esposa a todo um gênero sexual, diminui-se a sua individualidade. E isso era algo extremamente calculado.
A minissérie, porém, Lorena vai na contramão da narrativa criada na época, oferecendo uma visão diferente daquele caso.
Além de dar um nome àquela mulher, a minissérie também lhe dá uma voz e explica o contexto no qual tudo aquilo aconteceu.
Isso demonstra a importância desta atração. Mas não parece ter sido suficiente para gerar a atenção que a minissérie (ao menos na minha opinião) merece.
Mesmo tendo o cineasta Jordan Peele (diretor de Corra! e Nós) entre os seus produtores, a série não pareceu causar grande alarde entre o público amante de histórias de True Crimes, ao contrário, por exemplo, da recente Conversando com um serial killer: Ted Bundy, da Netflix.
Pensando nisso, resolvi fazer este texto detalhando seis principais motivos para você querer conhecer e assistir a esta produção. Afinal, além de ser muito importante histórica, Lorena também tem uma relação direta com a contemporaneidade.
Ao longo deste post, tentarei expor alguns dos elementos narrativos que mais me chamaram a atenção nessa minissérie. Falarei sobre como ela:
- Oferece uma visão diferente da cobertura dada pela mídia na época;
- Apresenta uma crítica pesada à sociedade contemporânea;
- Fornece uma investigação detalhada dos fatos;
- Faz uma relação com o atual cenário político;
- Contrapõe os argumentos apresentados;
- E mostra o rumo tomado pelas vidas daquelas pessoas desde então.
Chegando ao final, eu espero ao menos ter criado uma curiosidade em relação a esta atração. Se você ficou interessado, não esqueça de deixar a sua opinião no campo de comentários abaixo.
Vejamos, então, quais são os cinco motivos para você conhecer (e ver) a minissérie Lorena.
Oferece uma visão diferente daquela fornecida pela mídia
Além de avaliar com muitos detalhes os fatos ocorridos, a minissérie Lorena também explora a maneira como esses fatos foram apresentados na época.
Fica muito claro desde o início que toda atenção da mídia estava voltada para John. Visto apenas como uma pobre vítima de um ataque injustificado e selvagem, ele era a estrela do show.
Em nenhum momento a mídia da época tentou realizar um trabalho investigativo aprofundado. Não era do interesse deles buscar os possíveis motivos por trás deste ato.
Não se pensou, por exemplo, na possibilidade de aquilo ser uma resposta à maneira como Lorena era tratada pelo marido.
Embora não faltassem evidências e informações a respeito disso.
Lorena falou repetidas vezes sobre os ataques violentos do marido, e os relatórios policiais e das testemunhas comprovavam essa sua acusação.
Em uma das suas primeiras declarações para os jornais da época, ela relatou os constantes estupros realizados pelo marido. Mas a mídia não tratou isso como uma informação relevante.
Em vez disso, a cobertura “jornalística” da época se preocupava apenas em denegrir a imagem da mulher, seja por meio de ofensas à sua aparência ou por meio de insinuações a respeito da sua origem latina – como se encontrassem ali uma justificativa para as suas atitudes.
Já a minissérie vai na contramão disso, dando a Lorena a voz e a atenção que lhes foram negadas ao longo dos anos, permitindo-a contar a sua versão.
A partir dos seus relatos, somados à investigação realizada pela equipe do documentário e às entrevistas com todos os envolvidos, é possível ter uma noção melhor do horror experienciado por essa mulher.
Isso possibilita ao público enxergar os fatos de outra maneira.
Critica o falocentrismo da sociedade moderna
Outro ponto importante abordado pela atração é o falocentrismo da sociedade moderna. Mas você sabe o que isso significa?
Falocentrismo é um termo muito utilizado pela psicologia para determinar uma sociedade guiada por meio do falo, ou seja, do pênis.
O falo, neste caso, simboliza todo o poder masculino exercido na sociedade, e a consequente submissão feminina.
O “ataque” de Lorena ao marido é um ataque à toda a sociedade falocentrica, e sua “intenção” é tirar do homem o poder que este exerce na sociedade.
Embora os policiais tenham encontrado o pênis decepado de John Wayne, e os médicos tenham conseguido realocá-lo ao seu corpo, isso não serviu para afagar o medo da sociedade masculina.
Visto como um ataque à masculinidade, o ato de Lorena não é aceito pela população, conforme as entrevistas feitas na época – e reproduzidas na série – revelam.
Afinal, tratava-se de um ato que feria a todos eles, podendo acontecer com qualquer um. E isso não poderia se repetir.
Aparentemente, nada poderia justificar para algo assim.
Nem mesmo se aquilo fosse um ato de autodefesa, com o intuito de desarmá-lo da arma usada para estupra-la praticamente todas as noites.
“Uma vida vale mais do que um pênis”, afirmou a advogada de defesa de Lorena durante o julgamento, mas nem todo mundo pareceu concordar com isso.
Ao trazer esta discussão para o primeiro plano, a minissérie procura expor o falocentrismo pelo que ele é: um sistema desigual e perverso, que pune quem o desafia.
Embora o destino de Lorena não tenha sido o pior dos resultados, ela ainda se saiu por baixo em relação ao marido.
As acusações contra ele eram sempre relativizadas ou colocadas em dúvida; as contra ela, não.
Detalhada investigação criminal
Assim como é comum em produções deste gênero, a minissérie traz uma extensa investigação do caso, cobrindo todos os dois julgamentos. Isso mesmo, dois julgamentos.
Tanto Lorena foi acusada de agressão contra o marido, como este foi a julgamento pelas acusações dela de agressão.
E são apresentadas entrevistas com a maioria envolvidos nos dois casos. Além de John e Lorena, há também entrevistas com os advogados, testemunhas, policiais, promotores e membros do júri.
Através desta extensa cobertura, é possível conhecer um pouco mais sobre as leis vigentes no estado da Virgínia e perceber isso funcionou em favor de John.
No julgamento dele, só era permitida a apresentação de fatos ocorridos num período de cinco dias antes do ocorrido.
Desta forma, não era possível posicionar o ato dela como uma resposta à anos e anos de abuso. Apoiado pelas leis locais, o tribunal não admitia esse argumento.
Da mesma maneira, fica clara a falta de preparo de muitos dos envolvidos para lidar com questões de abuso doméstico. Embora essa discussão fosse antiga, sua criminalização ainda estava engatinhando.
Ideias infelizmente repetidas até hoje, como a de que “ela poderia fugir quando quisesse” ou “não existe estupro entre marido e mulher, apenas sexo”, fizeram parte dos argumentos judiciais.
Com o intuito de mudar um pouco essa visão, o diretor Joshua Rofé foca sua atenção nos depoimentos de Lorena ocorridos no seu próprio julgamento, quando ela finalmente pode contar a sua versão dos fatos.
E embora a mídia tenha tratado o seu relato com descrença, as imagens do julgamento são bastante reveladoras. É agonizante ver Lorena tentando encontrar as palavras, em meio a choros e soluços, para descrever a sua convivência com John.
Mais doloroso ainda é ouvir suas descrições dos ataques sofridos com frequência.
Relação com a realidade política atual
Embora a minissérie trate de um caso ocorrido há mais de 20 anos, o desenrolar das situações e algumas das preocupações apresentadas refletem situações e preocupações contemporâneas.
Naquela época, Lorena recebeu muito apoio de movimentos feministas. Essa união foi de extrema importância, pois mostrou-lhe que ela não estava sozinha na sua luta.
Tal união encontra reflexo nos atuais movimentos feministas, cujo intuito é trazer à tona casos abusos enterrados sob um regime de medos e represálias.
É notável, portanto, a preocupação de uma entrevistada de que as conquistas dos direitos das mulheres sejam vistas apenas como uma onda passageira.
Trata-se da mesma preocupação de muitas mulheres em relação às questões levantadas por movimentos como o #MeToo. É o medo de tudo isso logo ser esquecido, e as coisas voltarem a ser como elas eram antes.
Caso estes medos se confirmem, isso comprova a nossa incapacidade de aprender com o passado, possibilitando a repetição dos mesmos erros no futuro.
Talvez este seja o motivo principal para os realizadores da atração se posicionarem politicamente, e de maneira tão incisiva. Tal posicionamento se dá de diferentes maneiras:
- Mostrando como uma maioria republicana tentou rejeitar um projeto de lei – já aprovado pelo presidente – voltado à proteção da mulher dentro do lar;
- Dando destaque à presença do senador Bernie Sanders, um dos candidatos à presidência no próximo ano e um dos grandes defensores dessa lei;
- Destacando a placa do carro de John Wayne Bobbitt, na qual é possível ver o nome do presidente Trump.
Ainda assim, a minissérie Lorena não é uma propaganda do partido democrata. Afinal, não é difícil traçar um paralelo entre a maneira como Lorena foi tratada pela imprensa e o tratamento recebido por Monica Lewinsky.
Em ambos os casos, os homens envolvidos saíram incólumes, ao contrário das mulheres, cujas vidas foram expostas incansavelmente.
Contrapõe os depoimentos como forma de chegar à verdade
O diretor Joshua Rofé (responsável pelos quatro episódios) é hábil ao extrair informações importantes dos seus entrevistados, confrontando os depoimentos contraditórios para explicitar as mentiras contadas por John ao longo dos anos.
Aparentemente incapaz de assumir responsabilidade por seus atos, o homem busca o tempo todo uma justificativa para o rumo tomado pela sua vida.
Ele tenta, inclusive, relativizar todas as outras acusações de abuso feitas contra ele ao longo dos anos. Para John, não apenas essas acusações são mentirosas, como derivam da acusação inicial feita por Lorena.
Numa época de fake news e pós-verdades, John parece encontrar conforto no fato de não precisar assumir responsabilidades pelos seus atos, e de poder viver tranquilo no seu próprio mundo imaginário.
Rofé, porém, expõe essas mentiras. Ele contrapõe os depoimentos de John com fatos, expondo, por exemplo, as cartas e mensagens que John enviou para Lorena durante muito tempo.
Além disso, o diretor cria rimas visuais bastante significativas. Em certo momento, Lorena é vista no seu carro, de cara limpa. Em seguida, sua imagem é substituída pela de John a bordo da sua moto, cobrindo seu rosto e sua cabeça.
O significado é claro: enquanto uma não tem medo de se expor, o outro procura esconder a sua verdadeira identidade, como forma de proteção.
Oferece uma visão da vida daquelas pessoas hoje em dia
Outra característica importante da minissérie é que ela nos oferece uma visão dos rumos tomados pela vida daquelas pessoas, seja imediatamente após o ocorrido e também ao longo dos anos.
Não é nenhuma surpresa que a repercussão do caso tenha dado a John um status de estrela. Ele fez diversas aparições públicas, deu muitas entrevistas e até iniciou uma carreira no cinema pornô. Ela procurou se manter afastada.
Enquanto John parece viver às custas do seu passado – ele ainda guarda as camisetas vendidas na época do seu julgamento –, Lorena só deseja seguir em frente com a sua vida.
Mas o mais importante é perceber como ela usa a sua infâmia para levantar a questão do abuso doméstico em todas as entrevistas das quais participa, até mesmo em programas de humor.
“Nós dois estávamos errados”, diz Lorena em certo momento. E a minissérie opera nesta área cinzenta, buscando compreender as complicações do caso e desenterrar um histórico de abusos antes silenciado.