Clint Eastwood construiu boa parte da sua carreira em cima da figura do cowboy solitário. Filmes como a trilogia dos dólares ajudaram a estabelecer essa aura em torno do ator.
Embora o gênero de western tenha passado por um revisionismo, do qual o próprio Eastwood participou – com o ótimo Os Imperdoáveis –, a iconografia do cowboy permanece no nosso imaginário até hoje.
Em A Mula, seu mais recente trabalho como ator e diretor, Clint Eastwood oferece uma nova revisão do gênero, removendo o vaqueiro do velho oeste e colocando-o nas estradas asfaltadas.
Escrito por Nick Schenk (Gran Torino) com base numa história real, o roteiro acompanha Earl (Eastwood), um florista veterano cuja vida foi gasta na estrada, vendendo seus produtos para clientes regulares e participando de convenções, das quais normalmente sai premiado.
Earl se sente à vontade nesses ambientes. Ele caminha sorridente pelos corredores, conversa com todo mundo e todos querem conversar com ele. E no bar, é ele quem paga as bebidas.
Em contrapartida, sua família precisou se acostumar com a sua ausência. Ele perdeu aniversários, casamentos e outros eventos importantes. Criou um ressentimento grande em todos os seus familiares, com exceção da neta Ginny (Taissa Farmiga), a única com quem ainda mantém contato.
Como um tubarão, Earl precisa se manter em constante movimento. E enxerga a família como uma ancora cujo único intuito é mantê-lo em um único lugar, matando-o aos poucos.
Western X Filme de estrada
As semelhanças entre o protagonista de A Mula e os demais personagens interpretados por Eastwood são visíveis. Tanto os vaqueiros durões do velho oeste quanto o florista idoso buscam a solidão.
E assim como aconteceu com o cowboy quando a lei chegou ao Oeste, não há mais lugar para este florista analógico em um mundo digital. Tudo muda quando um conhecido da sua neta lhe faz uma proposta.
Interessado no fato de Earl nunca ter tido uma multa, o sujeito lhe indica alguém disposto a pagá-lo apenas para dirigir. Mais especificamente, para transportar grandes carregamentos de drogas.
Da mesma maneira como o cowboy cansado das matanças não hesitava em puxar o gatilho mais uma vez, o florista não pensa duas vezes antes de entrar na sua camionete e pegar a estrada, usando a necessidade de sustentar a família como justificativa para tal.
Sua real motivação, porém, é outra. Antes afundado em dívidas e despejado da sua casa, ele encontra no transporte de drogas uma forma de retomar a sua antiga glória. Torna-se uma mula para o cartel, e toma gosto por isso.
Agora, Earl recebe agradecimentos por ter reformado o salão de festas da sua comunidade, e pode pagar pelo casamento e pelos estudos da neta. Mantém-se, portanto, a alcunha do sujeito heroico que salva a cidade e cavalga em direção ao pôr-do-sol.
A Mula e o Cowboy
A imensidão desértica do velho oeste é substituída por uma estrada reta e asfaltada. Embora Earl faça caminhos diferentes, a jornada sempre converge ao mesmo local (um hotel onde ele entrega sua encomenda e recebe o pagamento).
A rotina da mula é repetitiva, assim como a do cowboy. Mas o cowboy era jovem. E a mula é velha.
Por mais que tente arrancar resquícios de virilidade de seu personagem (colocando-o a participar não de um, mas de dois ménage a trois), Eastwood encarna bem a figura do velhinho simpático e supostamente alheio ao seu entorno.
Algumas mudanças na sua personalidade, porém, são bem-vindas. Agora, ele acolhe os estrangeiros, em vez de enfrenta-los. Até trabalha para um. E mesmo apresentando sinais de racismo, mostra-se disposto a aprender e a mudar.
O mesmo não pode ser dito dos policiais. Estes continuam a propagar os estereótipos, parando apenas as pessoas que eles consideravam mais suspeitas, ou seja, imigrantes e minorias. Por ser alguém acima de qualquer suspeita, Earl viaja tranquilamente.
O protagonismo de Clint Eastwood
Eastwood procura manter a câmera próxima de si na maior parte do tempo, causando uma cumplicidade entre público e protagonista. Sua atuação, aliás, é o ponto algo do filme. De resto, o longa é bastante esquemático na sua execução.
Há pouco desenvolvimento dos personagens coadjuvantes. Estes funcionam única e exclusivamente em função do protagonista (o agente interpretado por Bradley Cooper chega a mencionar a esposa em certo momento, mas esta nunca aparece).
O roteiro também aposta em muitas coincidências para movimentar a trama, como o fato de Earl ter desviado do caminho justo quando a polícia o esperava.
Apesar dos problemas, a mensagem fica intacta: nunca é tarde demais para aprender com seus erros e mudar. Este é o ensinamento trazido pela maturidade de Eastwood.
E é a diferença entre Earl, o cowboy do asfalto, e os outros personagens do passado do ator/cineasta Clint Eastwood.
Perfil do diretor – Clint Eastwood
Clint Eastwood nasceu em 31 de maio de 1930, em San Francisco. Ele começou a sua carreira como ator em 1955, fazendo uma participação não creditada em filmes como A Revanche do Monstro.
Participou também dos longas Francis na Marinha e Mulheres, Sempre Mulheres (pelos quais foi devidamente creditado), e começou a ganhar mais destaque em filmes como Emboscada em Cimarron Pass (1958) e Lutando Só Pela Glória (1958), e com a série Rawhide.
Porém, o reconhecimento veio com Por Um Punhado de Dólares (1964), obra seminal do cineasta Sergio Leone, responsável por disseminar o chamado western spaghetti (faroestes produzidos na Itália).
O filme ganhou duas continuações, Por uns Dólares a Mais (1965) e Três Homens em Conflito (1966). Desde então, Eastwood passou a estrelar diversos outros westerns, como Meu Nome é Coogan (1968) e Os Abutres Têm Fome (1970).
Em 1971, fez parceria com o cineasta Don Siegel ao estrelar o filme O Estranho que Nós Amamos (que ganhou um remake recentemente). A parceria lhe outro papel icônico na sua carreira, o policial Dirty Harry, de Perseguidor Implacável, também em 1971.
A carreira como diretor
Foi neste mesmo ano que Clint Eastwood iniciou a sua carreira de diretor, com o thriller Perversa Paixão. Ele tomou gosto pela função, repetindo-a 37 vezes ao longo de quase 50 anos de carreira.
Entre seus trabalhos mais conhecidos como diretor estão Bird (1988), cinebiografia do músico de jazz Charlie “Bird” Parker estrelada por Forest Whitaker, Os Imperdoáveis, faroeste revisionista vencedor de quatro Oscars (incluindo o de Melhor Filme), As Pontes de Madison, belo e triste romance estrelado por ele e por Meryl Streep.
Além destes, há também os filmes Sobre Meninos e Lobos, indicado a seis Oscars e vencedor de dois, Menina de Ouro, drama sobre boxe vencedor de quatros Oscars (inclusive Melhor Filme) e Sniper Americano, um dos maiores sucessos de bilheteria da sua carreira.
Seus trabalhos mais recentes como diretor foram o drama Sully: O Herói do Rio Hudson (2016), história real do piloto que pousou um avião no meio do Rio Hudson, e 15h17: Trem Para Paris, também baseado numa história real, desta vez sobre três americanos que descobrem um plano terrorista a bordo de um três para Paris.
Curiosidades sobre o filme A Mula
Baseado em uma história real
Embora o roteiro tenha tomado muitas liberdades na construção da sua narrativa, a base para a trama deste filme é a história real de Leo Sharp, um veterano de guerra e um famoso horticultor.
Assim como é visto no filme, Sharp viajou todo o país e suas flores venceram diversos concursos. Ele chegou a plantar flores no jardim da Casa Branca durante o governo de George H. W. Bush.
Com o advento da internet, Sharp não conseguiu se adaptar às novas tecnologias e tentou manter seu negócio à moda antiga: sendo negociado pelos correios. Isso não deu certo e ele logo se viu afundado em dívidas.
Após receber o convite para transportar drogas, Leo passou a dedicar-se integralmente à sua nova função. Ele se tornou a principal mula para o Cartel Sinaloa, chegando a transportar até 250 quilos de cocaína por mês.
Retorno de Clint Eastwood à carreira de ator
Clint Eastwood é dono de uma carreira extensa e prolífica como ator. Ele tem mais de 70 créditos como ator, desde que começou a atuar, em 1955.
Alguns de seus papeis mais marcantes no cinema foram a trilogia dos dólares (de Sergio Leone) e pelos filmes do policial Dirty Harry.
Ultimamente, porém, Clint Eastwood tem passado mais tempo atrás das câmeras do que à frente delas. Ele lançou dois filmes em 2014 (Jersey Boys: Em Busca da Música e Sniper Americano), um em 2016 (Sully: O Herói do Rio Hudson), e dois em 2018 (15h17: Trem Para Paris e este A Mula).
Porém, seu último trabalho creditado como ator tinha sido em 2012, quando estrelou o drama esportivo Curvas da Vida. A Mula marca o seu retorno para a frente das câmeras depois de sete anos.
Mudança na direção de fotografia
A Mula também marca uma mudança muito significativa na direção de fotografia dos filmes de Clint Eastwood.
Nos últimos 18 anos, o cineasta trabalhou com o diretor de fotografia Tom Stern, responsável pela fotografia de filmes como Sobre Meninos e Lobos, Menina de Ouro, A Conquista da Honra, Cartas de Iwo Jima, A Troca (pelo qual foi indicado ao Oscar), Sniper Americano, entre outros.
Stern foi responsável por dar aos filmes de Eastwood um aspecto quase monocromático às imagens, muitas vezes mergulhando os personagens numa bela escuridão.
A mudança veio com a escolha de Yves Bélanger para fotografar A Mula. Bélanger, que tem no currículo filmes como Brooklyn, Laurence Anyways e a série Objetos Cortantes, aposta numa imagem mais clara e colorida.
Parceria entre Clint Eastwood e Bradley Cooper
Esta é também vez que Clint Eastwood e Bradley Cooper trabalham juntos. A primeira vez foi em Sniper Americano, dirigido por Eastwood e estrelado por Cooper.
Sua parceria, porém, vai além disso. Durante muito tempo, Eastwood esteve envolvido com o remake de Nasce uma Estrela, que na época ele dirigiria e seria estrelado pela cantora Beyoncé.
O projeto passou por diversos atrasos e Clint desistiu da direção. Mais tarde, o próprio Bradley Cooper assumiu não apenas a direção do filme, como também o estrelou, rendendo oito indicações ao Oscar.
Nasce uma Estrela ainda venceu na categoria de Melhor Canção Original.