É fortuito que o lançamento do terror espanhol O Poço tenha acontecido justamente no dia em que grande parte do nosso país entrou em uma quarentena devido à ameaça do coronavírus.
A obra foi rodada com antecedência e sua estreia já havia sido agendada pela Netflix meses antes de a ameaça originária na China atingir outros continentes.
Mesmo assim, comparações entre realidade e ficção são válidas, e, no caso do filme dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, também são generosas.
Escrito por David Desola (Almacenados) e Pedro Rivero (Psiconautas, As Crianças Esquecidas), o roteiro acompanha Goreng (Ivan Massagué), um sujeito que acorda certo dia em uma estranha prisão vertical.
Ele divide sua cela com Trimagasi (Zorion Eguileor), que lhe explica o funcionamento daquele lugar: todos os dias, a comida dos prisioneiros é servida no primeiro andar, e uma plataforma flutuante desce os alimentos, andar por andar, até chegar ao final.
Quem se encontra nos andares acima se serve à vontade, ao passo que falta comida para quem fica nas camadas inferiores. A relação capitalista é óbvia: enquanto sobram recursos para alguns poucos, que se empanturram de comida até não poderem mais, outros passam – e até morrem de – fome.
É uma lógica explicitada logo de início, quando a narrativa afirma: “Existem três tipos de pessoas. Aqueles que estão em cima, aqueles que estão embaixo e aqueles que caem”. A divisão vertical de classes está muito bem estabelecida. E a ascensão social, tão cara ao neoliberalismo, é impossível.
Porém, O Poço brinca com esta lógica ao mudar, aparentemente de maneira arbitrária, os seus “residentes” para outros andares no início de cada mês.
Assim, se no começo Goreng e Trimagasi sobrevivem comendo os restos deixados pelas pessoas dos mais de 40 andares acima, existe a possibilidade de, no mês seguinte, eles passarem para algum dos incontáveis andares abaixo.
O individualismo visto no filme encontra reflexo na nossa realidade.
Enquanto aqui, os supermercados não dão conta de repor os alimentos, uma vez que a população está estocando-os sem necessidade, no filme a economia e o bom senso também são soluções possíveis, mas não aplicadas.
Se em vez de comerem tudo o que veem pela frente, os prisioneiros se servissem apenas do necessário, haveria recursos suficientes para todo mundo – ou, ao menos, era assim que deveria haver.
Mas a solidariedade dá lugar ao individualismo.
Quem está nos andares de cima não fala com os quem está embaixo. Cada um só se importa consigo mesmo. E a única maneira de conseguir passar uma mensagem humanitária é pelo medo.
Novamente, é possível relacionar a situação do longa com a nossa realidade, em que, ao menos em alguns casos, o medo conseguiu unir diferentes lideranças, diferentes partidos, em uma única causa – embora certas pessoas dos andares de cima prefiram ignorar o problema.
Tais interpretações, é claro, não estavam presentes na cabeça do diretor Galder Gaztelu-Urrutia quando realizou O Poço. Seu intuito é mesmo criticar o capitalismo. E, visando atingir esse objetivo, ele acaba sacrificando a narrativa.
A pressa em passar a sua mensagem – e a necessidade de martela-la constantemente – fazem com que o filme soe apressada. O tédio, comum a obras sobre de encarceramento, é inexistente aqui. A montagem prioriza uma passagem de tempo acelerada, e meses inteiros se passam em questão de minutos.
Da mesma maneira, Gaztelu-Urrutia parece perder o controle no terceiro ato. Por mais que continue clara, sua mensagem se mostra um mero subterfúgio para cenas violentas que se estendem além da conta.
E mais, o diretor também parece atirar metáforas para todos os lados, na esperança de atingir alguma coisa.
A amplitude de possibilidades de interpretações permite que se faça diferentes relações acerca daquilo que é mostrado na tela (como a apresentada ao longo deste texto), mas também arrisca a esvaziar o filme até não sobrar nada no prato.