Persépolis é uma história em quadrinhos francesa escrita e desenhada por Marjane Satrapi com base nas suas próprias experiências vivendo no Irã durante a guerra com o Iraque e seu posterior exílio em outro país. Narrada em capítulos curtos, de forma cronológica, a HQ explora boa parte da vida da autora, desde a infância até o início da vida adulta.
Filha de revolucionários, Marjane foi criada com muita liberdade pelos seus pais, que sempre a incentivaram a pensar por si própria e respeitaram sua liberdade. Essa liberdade é colocada em risco quando Aiatolá Khomeini assume o poder do país. Com o intuito de reverter a ocidentalização promovida pelo xá até então, é instituído um regime ditatorial para a imposição dos novos valores.
A autora expõe com bom humor o absurdo de algumas situações, como quando ela foi repreendida por estar correndo pela rua para pegar o ônibus. A justificativa para tal repreensão era que sua bunda balançava demais enquanto corria, atraindo o olhar dos homens ao redor.
E embora momentos como este pareçam estar fora da nossa rotina ocidental, muito do que é exposto na HQ se enquadra também no nosso mundo “liberal”. Situações como mansplaining, julgamentos sociais por conta da liberdade sexual das mulheres ou o descrédito em relação às suas ações são características comuns tanto aqui quanto lá.
Com o crescimento protagonista, os conflitos se intensificam. Alguns conhecidos de Satrapi foram presos ou mortos, e explosões passaram acontecer nas proximidades da sua casa. Com isso, o humor da história diminui. O clima agora é de tensão.
Nisso, Persépolis se aproxima de outra HQ seminal, Maus, na qual Art Spiegelman narra a experiência do seu pai, um judeu sobrevivente dos campos de concentração da 2ª guerra mundial. Como relatos históricos, as duas narrativas se assemelham. As sensibilidades envolvidas nas suas construções, porém, diferenciam-se como dia e noite.
Enquanto Art Spiegelman procura apresentar em detalhes os horrores experienciados por seu pai, Satrapi não mostra explicitamente as mortes e a violência. Vemos a sua reação a algo (seja uma morte ou uma notícia trágica), e não o fato em si. Tal distinção pode ser relacionada à vivência dos autores e suas relações com a história narrada. Afinal, Spiegelman apenas ouviu os relatos dos horrores da guerra, mas Marjane os viveu. Seu trauma é muito mais forte.
Outra diferença é que Marjane não acompanhou todo o conflito entre Irã e Iraque. Seus pais a enviaram para a Áustria logo que ela entrou na adolescência. Assim, sozinha num país estrangeiro, sem falar a língua local, ela precisou adentrar o mundo estranho daquele país desconhecido – do qual ela sequer falava a língua – ao mesmo tempo em que adentrava o mundo estranho da puberdade.
Persépolis é, portanto, menos um retrato detalhado da guerra, e mais um diário pessoal das experiências da autora. Seus relatos a respeito dos primeiros amores – e das primeiras decepções amorosas –, da primeira vez que usou drogas e das suas experiências sexuais podem ressoar com os de qualquer outro adolescente da sua idade.
A autora expõe até mesmo os momentos mais embaraçosos da sua trajetória. É o caso de quando ela colocou uma pessoa inocente em perigo para se salvar. Trata-se de uma ocasião que a memória seletiva poderia querer trancar no fundo de um baú e perder a chave, mas Satrapi expõe com sinceridade, incentivando o leitor a julgá-la pelos seus atos.
O traço de Marjane é complexo em meio a sua simplicidade. Ela usa apenas duas cores: preto e branco. Além disso, não respeita uma regra espacial bem definida. Seus personagens parecem flutuar em meio ao quadro. Ainda assim, são desenhos recheados de metáforas: em certo momento, a vemos caminhando sob um enorme cemitério que são as ruas do Irã.
Tudo isso contribui para fazer de Persépolis uma bela narrativa gráfica, contada com bom humor, agilidade e inteligência. Os comentários ácidos e a visão de mundo única fazem de Marjane Satrapi uma protagonista cativante, cuja jornada, por mais que seja triste, é um deleite de ser acompanhada.