Filme sobre tetraplegia e sobre memória de maneira sensível e pessoal.
Antes do início da sessão de estreia do longa-metragem Organismo (2017) na 41ª Mostra de Cinema de São Paulo, o realizador Jeorge Pereira disse que via o seu filme como uma história linear, ainda que algumas pessoas da equipe não concordassem tanto com essa afirmação. Durante boa parte da projeção, fiquei me questionando acerca dessa afirmação e, ao final não só passei a concordar com a sua opinião, como a minha admiração pela sua obra aumentou ainda mais.
Escrito pelo próprio diretor, o roteiro acompanha Diego (Rômulo Braga), um homem tetraplégico que passa seus dias rememorando a sua vida. Aparentemente desconexa, a narrativa mostra o protagonista recebendo tratamento do seu fisioterapeuta (Arthur Canavarro), seguida por cenas de Diego ainda bebê, dando os seus primeiros passos, e momentos da sua juventude, quando se aventurava tentando roubar frutas do vizinho. São momentos supostamente aleatórios da sua vida, combinados com questionamentos religiosos e filosóficos que surgem ao longo do seu fluxo de memória.
Pela narração em off, Diego explica que sempre viu o mundo por meio de frestas, seja frestas de portas entreabertas ou pela sacada do colégio, onde espiava as meninas tomando banho. Frestas não formam imagens completas, apenas fragmentos. E o que acompanhamos ao longo do filme são fragmentos da memória de Diego. São momentos importantes da sua vida, pois refletem muito da sua personalidade, seja isso uma coisa boa ou ruim. A partir do momento que o conhecemos melhor, percebemos que ele é um ser bastante falho. Ciumento e infiel, ele parece fazer de tudo para afastar a namorada (Bianca Joy Porte), por mais que esta continue demonstrando afeto por ele. E é justamente em torno do relacionamento dos dois que gira a narrativa.
Segundo o diretor, a ideia para o filme surgiu depois que ele começou a trabalhar em uma ONG, na qual teve contato com recém-lesionados na região medular, e passou a observar como eles lidavam com essa situação, e como aquilo afetava a vida deles. “As implicações físicas, o processo de adequação à nova condição, mas principalmente as culturas de gênero e do corpo são os maiores desafios de alguém que antes andava com as próprias pernas”, declarou ele. Sua abordagem, porém, é ainda mais íntima.
Cadeirante desde a infância, o cineasta usa Organismo para contar uma história muito pessoal. Além de tratar do tema que já lhe é comum, em muitos momentos o diretor opta por filmar os eventos em contra-plongée, ou seja, apresentando uma visão de baixo para cima. São toques de pessoalidade que dão mais força ao seu trabalho. E com isso, Jeorge consegue entregar uma obra sensível sobre a memória e sobre a necessidade de reavaliar seus atos. E, sim, é uma narrativa linear.