O cinema se despede de Abbas Kiarostami

O cinema perde Abbas Kiarostami (76 anos), vítima de um câncer gastrointestinal, que vinha tratando desde março, segundo os noticiários. Não era apenas o mais célebre diretor iraniano, que juntamente com nomes como o de Mohsen Makhmalbaf colocaram as produções do país, inspiradas no Neorrealismo italiano, em evidência nos anos 90. Também era um dos mais capazes artífices do cinema em todos os tempos, com obras de grande rigor formal, conteúdo social e poesia. Seus filmes participaram de festivais e mostras por todo o mundo, colhendo admiração e prêmios, e também indicando caminhos para um cinema onde a falta de recursos materiais não impedia de cristalizar a inspiração em obras singulares.


Filmes como Close-up (1990) são de uma engenhosidade, num tratamento em camadas e mesclando o registro documental e o ficcional de tal forma e ao mesmo tempo mantendo a humanidade, que não devem nada aos labirintos sensoriais que alguns diretores do ocidente apostam, como em Blow-Up (1966) de Antonioni e Hiroshima Moun Amour (1959) de Resnais. Num enredo que conta um caso inspirado em uma notícia de jornal, onde um homem se faz passar por um diretor de cinema para garantir a simpatia e apoio material de uma família rica, Kiarostami constrói um filme bastante complexo, difícil de classificar, mas também uma tocante homenagem à paixão pelo cinema.

Em Através das Oliveiras (1994) [acima] mais uma vez a ação se passa nos bastidores de uma filmagem, onde dois jovens protagonizam os papeis de um casal que na verdade tem também conflitos amorosos no ambiente externo das filmagens. Porém, estes dois níveis são registrados ao mesmo tempo por um terceiro registro, que é o filme que vemos. O fluxo de informações e emoções, o drama que se apresenta entre os contrastes e as coincidências dos dois registros, são o tecido dramatúrgico do filme. O diretor apresenta, muitas vezes de maneira bastante crua, os mecanismos de uma filmagem, não temendo causar rejeição por mostrar tomadas repetidas de uma mesma cena, como que numa estratégia de não acomodar o expectador no enredo, mas fazê-lo completar o sentido do material que vê. Também desencanta o registro cinematográfico como possuidor de um sentido unívoco, mas sim uma operação de co-autoria com o espectador, que traz suas impressões e disposição para a proposta do cineasta.
Em Five (2003), sua homenagem ao cineasta japonês Yasujiro Ozu, Kiarostami se baseia em cinco tomadas fixas, aonde o encadeamento de elementos da composição dá sentido aos trechos, de forma muito aberta e depurada, quase que remetendo aos registros fixos do início do cinema, com os irmãos Lumière. O diretor, aliás, teve oportunidade de utilizar a pioneira câmera dos cineastas de Lyon no projeto coletivo Lumière et compangnie (1995), no qual filma um singelo frigir de ovos (cena cotidiana, a moda dos Lumière) mesclado a um breve monólogo amoroso (de um amor desfeito, mas buscando restauração) pelo telefone.

Em Shirin (2008) o diretor desloca a câmera da representação de uma peça teatral para o seu público, e registra a expressão de mais de uma centena de atrizes durante o drama, fazendo da reação de seus rostos o enredo, o relevo material e emocional do filme. No recente Cópia Fiel (2010) [acima], ele acompanha um casal (ou melhor, uma dupla) que vai tecendo seu relacionamento em desobediência a um desenvolvimento dramatúrgico único, invertendo e mudando de papeis no decorrer do filme, como que contando várias estórias, de vários personagens e situações, utilizando apenas dois atores.
Abbas Kiarostami se consagrou com a Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, com Gosto de Cereja (1997), que conta uma história tocante e de grande amplitude temática com o mínimo de recursos, se passando quase inteiramente dentro do carro, com o protagonista as voltas com um plano de suicídio e buscando alguém para auxilia-lo. Este também é o padrão de Dez (2002), que se passa novamente no espaço filmado (agora digitalmente) de um automóvel. Mais recentemente, o cineasta filmou Um Alguém Apaixonado (2012) [foto abaixo] no Japão (já tinha filmado Cópia Fiel na Itália), e também se dedicou algumas vezes aos documentários, como ABC Africa (2001), que trata das condições precárias da infância e da epidemia de AIDS em Uganda.

Em toda sua carreira Abbas Kiarostami potencializou os recursos do cinema, muitas vezes de forma minimalista e alheio as convenções do cinema comercial, outras trazendo novas concepções a produções maiores e integrantes do circuito mais convencional. Seus filmes se tornaram um dos mais importantes argumentos de que o cinema pode ainda se expandir e evoluir expressivamente, mesmo que para isso tenha que limitar sua exuberância, e optar por transmitir emoção e sentido de forma pouco usual.

Kiarostami ajudou sobretudo a mostrar um caminho diferente para as cinematografias fora do abastado eixo norte-americano e europeu, estimulando novas gerações de realizadores nos mais diversos lugares do mundo. Mostrou que para fazer um bom cinema é preciso que tenham uma boa ideia, algum equipamento, e saibam colocar identidade e alma no que produzem, como havia feito o Neorrealismo italiano antes, e também seus descendentes da Nouvelle Vague francesa e do Cinema Novo brasileiro. Tratou o cinema como voz, de um indivíduo ou de um lugar, e manteve o interesse do público e crítica durante a sua brilhante carreira.

Sobre o autor:

Douglas König é cinéfilo, divulgador e mediador de mostras de cinema. Conhecedor e estudioso da sétima arte, seu gosto varia entre o melhor da obra de Antonioni até o pior de George Lucas. Leia também os artigos de Douglas sobre o Cinema Europeu e um especial sobre Star Wars.