Crítica | Azul É a Cor Mais Quente

Em certo momento de Azul É a Cor Mais Quente, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes desse ano, Adèle (interpretada de maneira fantástica por Adèle Exarchopoulos) explica a um colega que o livro La Vie de Marianne, de Pierre de Marivaux, tem muita descrição de sentimentos, e isso coloca o leitor no lugar da protagonista. Não é por acaso que esse instante, ainda no início do filme, reflita grande parte da narrativa que o cineasta Abdellatif Kechiche (Vênus Negra) irá apresentar dali em diante, acompanhando a vida de uma personagem fascinante e problemática, e que graças a uma excelente atuação, faz com que o público fique o tempo todo ao seu lado, nos momentos bons e nos ruins, ao mesmo tempo em que não julga as suas ações, por piores que elas sejam.

Escrito pelo próprio Kechiche em parceria com Ghalia Lacroix (também de Vênus Negra), e tendo como base a história em quadrinhos de Julie Maroh, o roteiro acompanha a vida de Adèle, uma jovem estudante razoavelmente popular que vive numa rotina que se resume a ir para a escola, ler, e, esporadicamente, se encontrar com rapazes. Sua vida muda quando ela vê na rua Emma (Léa Seydoux), uma garota de cabelos azuis que chama sua atenção, e acaba despertando desejos que ela nem sabia que existiam. Inicialmente negando esses sentimentos – o que causa extremo desconforto –, Adèle finalmente opta por ir atrás de Emma, iniciando um relacionamento que, entre outras coisas, serve para definir quem ela é como pessoa.

Estabelecendo já no primeiro diálogo uma discussão sobre amor à primeira vista e cortando em seguida para uma conversa sobre sexo no primeiro encontro, Kechiche define desde o início a conturbada história de relacionamentos que Adèle experimentará durante todo o filme. Além disso, o cineasta investe em retratar a dualidade da vida da sua protagonista por meio de constantes rimas visuais. Um exemplo disso é a já famosa cena de sexo entre Adèle e Emma, que serve não apenas para mostrar a primeira descobrindo e explorando todo o corpo da sua parceira (assim como descobrindo o seu próprio prazer), como ainda tem o objetivo de contrastar com a sequência em que ela faz sexo com o tal colega da escola, ato esse que é mostrado de maneira rápida, seca e aparentemente pouco prazerosa.

Outra rima importante que o diretor propõe se dá em duas ocasiões diferentes em que Adèle é vista dançando. Se a cena do aniversário ilustra a felicidade que ela está sentindo – quando sua vida parece perfeita –, a sequência em que ela dança com um colega de trabalho representa uma mudança significativa na trama, e as escolhas que ela faz naquele momento repercutirão pelo restante do longa.

Aliás, Kechiche utiliza essa sua propensão a abordar dicotomias para estabelecer as diferenças entre as suas personagens, que segundo o que ele mostra em tela, tem personalidades tão distintas devido à educação familiar que receberam. Enquanto a família de Adèle é mais centrada (ou comum, por assim dizer), Emma vem de uma família com uma forte veia artística. E talvez seja essa diferença que faz com que Adèle se interesse tanto por Emma, pelo fato dela finalmente encontrar alguém que a desafia intelectualmente, algo que ela acha fascinante, a princípio, mas que depois passa a ser um problema.

Hábil ao apresentar Emma como um ser atraente em todos os sentidos (dos cabelos aos olhos azuis), Kechiche acerta ao inserir uma música diegética na cena da primeira troca de olhares das duas garotas, o que dá àquele instante comum um ar mágico (e que casa perfeitamente com a ideia de amor à primeira vista discutida anteriormente). Também não é por acaso que o cineasta opta por enquadrar a atriz constantemente em contraluz, ilustrando assim aquela sensação lúdica – quase surreal – de início de relacionamento (e que contrasta novamente com o clima mais sóbrio da segunda metade do filme). E apesar de mostrar Adèle escondendo dos pais a sua orientação sexual, e até sofrendo bullying dos colegas de aula, Kechiche é bem sucedido ao não fazer disso o tema central da sua narrativa, que nunca afasta o foco das suas personagens. E é isso que faz de Azul É a Cor Mais Quente não só um excelente filme sobre descoberta sexual, mas também (e principalmente) uma belíssima história de amor.

Atenção: O texto a seguir contém spoilers. Só prossiga com a leitura se já tiver assistido ao filme.

Adèle e o Azul

Apesar do título original do filme ser A Vida de Adèle, o que casa perfeitamente com a proposta inicial, o título Azul É a Cor Mais Quente remete à temática intrínseca do trabalho de Kechiche e da quadrinista Julie Maroh, dando ao longa um subtexto bastante interessante envolvendo a cor azul. Além da associação básica com o cabelo e os olhos de Emma, o azul tem uma função muito mais específica dentro da narrativa. Ele funciona como a representação que Emma tem na vida de Adèle. Desde os objetos de cena, como o lençol da cama onde elas fazem sexo, a lousa que as alunas dela utilizam durante um ditado em sala de aula, o guarda-sol na praia, a roupa de Adèle na apresentação da escola, tudo isso é inserido no filme de maneira a colocar a protagonista em meio a um universo azul.

Isso fica mais evidente justamente quando Emma tinge seus cabelos de loiro, o que representa uma mudança brusca, uma vez que é o momento em que as duas começam a se afastar. E por mais que esse afastamento fique cada vez mais forte – culminando na traição de Adèle –, o azul se mantém presente, como uma espécie de lembrete da significância daquela vida a dois. Prova disso é a belíssima cena em que Adèle entra no mar. Afinal, se a água (ou o oceano) normalmente tem o significado de purificação no cinema, aqui ela serve pra ilustrar a influência que Emma ainda tem em sua vida, literalmente encobrindo a sua própria existência.

E quando as duas se encontram num restaurante perto do final do filme, Emma fica de costas para uma parede azul, e mesmo que seu cabelo agora seja loiro – um sintoma da sua nova vida – ela continua sendo, para Adèle, uma representação. Ou seja, continua sendo azul. Tanto é que a única vez que a protagonista expressa um mínimo sinal de alegria, a partir da metade do longa, é quando ela ouve a atual namorada de Emma falando que “você ainda está ali”, referindo-se às pinturas dela. Porém, as mesmas pinturas simbolizam o fim do relacionamento das duas, uma vez que, conforme alguém aponta durante o vernissage, elas variam entre o azul (velho) e o vermelho (novo). Ao final, Adèle é vista saindo do evento, vestida novamente de azul, mas sendo um único (e solitário) elemento dessa cor em meio a um ambiente sóbrio.

(La Vie d’Adéle | Drama | França | 2013 | 179 min.)
Direção: Abdellatif Kechiche
Roteiro: Abdellatif Kechiche e Ghalia Lacroix
Elenco: Adèle Exarchopoulos, Léa Seydoux, Salim Kechiouche, Benjamin Siksou, Mona Walravens