O lado bom de referenciar uma ou mais obras conhecidas é que o uso de um material facilmente reconhecível surge como um diálogo quase metalinguístico com o público, aumentando assim a apreciação do material ali apresentado. O lado ruim é que isso também pode sugerir uma comparação de qualidade entre referenciado e referenciador, e em muitos casos esse confronto é injusto, ampliando os pontos positivos do primeiro e apontando os negativos do segundo. É o que acontece com o recente Vida, mistura de ficção científica com terror dirigida por Daniel Espinosa (Protegendo o Inimigo).
Escrito pela dupla Rhett Reese e Paul Wernick (de Zumbilândia e Deadpool), o longa tem duas grandes referências: Gravidade e Alien, o 8º Passageiro. A trama acompanha um time de cientistas a bordo de uma estação espacial que se depara com um organismo unicelular, vindo de Marte, que constitui a primeira prova irrefutável de vida no espaço. O problema é que o ser, batizado de Calvin, evolui rapidamente, se adapta ao ambiente no qual está inserido e tem uma necessidade grande de se alimentar e de proteger a sua própria existência, algo que pode representar um problema mundial se ele cair na Terra.
A comparação com Alien é inevitável, tanto temática quanto narrativa. À medida que a criatura cresce e ganha força, começa a eliminar cada um dos membros da tripulação, demonstrando inteligência na execução dos seus “planos” (voltaremos a isso depois). Além do mais, Vida também se assemelha à obra de Ridley Scott pela forma como parece introduzir um protagonista aos poucos naquela história. Após alguns eventos que não vou revelar aqui, fica difícil saber quem é o “herói”, até que – assim como aconteceu com a tenente Ripley – vemos uma figura ascendendo e preenchendo uma vaga que não era dela inicialmente.
As semelhanças com Gravidade, por sua vez, são muito mais estéticas. Espinosa tentou replicar muito do que Alfonso Cuarón fez naquele trabalho que lhe rendeu o Oscar, e as vezes até consegue. É o caso, por exemplo, de uma cena logo no início do filme, na qual o cineasta faz uso do plano-sequência para ilustrar a interação da equipe enquanto se prepara para recuperar a capsula que veio de Marte ao mesmo tempo em que nos apresenta a todos os ambientes do interior da nave. Outra similaridade reside no primeiro plano desta obra, que remete ao início do longa de 2013: ambos iniciam a projeção com uma imagem da imensidão do espaço e um pequeno ponto se movimentando em meio às estrelas.
Não há nada de errado em fazer referências a outras obras. Alguns realizadores – como Quentin Tarantino – construíram suas carreiras assim. É importante, porém, que se traga ao menos algum diferencial – note que eu não disse algo “novo”. E é aí que reside o principal problema de Vida. Não só não vemos nada disso, como também ficam evidentes os problemas de desenvolvimento, problemas esses que aquelas obras que ele referencia não tinham, ou ao menos sabiam disfarçar muito melhor. Os defeitos são muitos, a começar pela concepção da criatura.
Inicialmente apresentado como um organismo formado por “olhos, músculo e cérebro”, Calvin não é um ser muito ameaçador. Mesmo colocando a tripulação em risco, na sua “infância” ele se parece mais com uma versão malvada de Flubber: Uma Invenção Desmiolada (e tudo bem se você não se lembra desse filme, ninguém lembra). Quando se torna adulto, essa ideia de ele ser todo olhos, músculos e cérebro é abandonada, já que ele ganha um corpo definido e até um rosto, ainda que continue não sendo tão assustador quanto deveria ser. É possível que isso seja uma mutação na qual ele se assemelha ao seu predador, mas nada é falado no roteiro.
Por mais que, teoricamente, ele seja um grande cérebro com tentáculos (essa sim seria uma imagem aterrorizante), algumas das decisões que o alienígena toma não podem ser explicadas nem por um intelecto superior. Não dá pra entender como um ser até então unicelular consegue decifrar o funcionamento de uma estação espacial, ao ponto de realizar proezas como manipular os trajes dos astronautas e até sobreviver do lado de fora da nave, conseguindo inclusive voltar para dentro. Podemos pensar que ele aprendeu sobre aquele lugar ao ler os pensamentos das suas vítimas – como em Independence Day –, mas tal explanação não é oferecida.
Não me entenda mal, não acho que há problema em incentivar a interpretação por parte do público. O problema é quando parece que os roteiristas queriam que nós fizéssemos o serviço para eles. Da mesma maneira, o filme parece querer nos empurrar algum envolvimento emocional com aquelas pessoas sem que elas tenham sido propriamente desenvolvidas. Sabemos que um deles (Hiroyuki Sanada) tem um filho recém-nascido, outro era paralítico na Terra (Ariyon Bakare), tem também um prefere ficar no espaço (Jake Gyllenhaal) e o o último é o engraçadinho da turma (Ryan Reynolds). Dessa lista, sobraram ainda as personagens femininas interpretadas por Olga Dihovichnaya e Rebecca Ferguson, que apesar de serem mulheres fortes, carecem até mesmo do pouco desenvolvimento que os seus colegas masculinos receberam.
Mesmo trabalhando com um material tão limitado, Daniel Espinosa demonstra apuro estético e narrativo que impedem – por pouco – que Vida se transforme num completo desastre. Ele cria belíssimas tomadas externas da estação espacial e até faz uma brincadeira enganando o espectador em certo momento, no melhor estilo de O Silêncio dos Inocentes – só que essa é só mais uma comparação que serve apenas para reforçar as qualidades do original.
Ano: 2017
País: EUA
Gênero: Ficção científica, Terror
Direção: Daniel Espinosa
Roteiro: Rhett Reese e Paul Wernick
Elenco: Jake Gyllenhaal, Ryan Reynolds, Rebecca Ferguson, Hiroyuki Sanada, Olga Dihovichnaya, Ariyon Bakare.