Crítica | A ausência de explicações em O Mundo Depois de Nós

Como você saberia se o mundo está acabando? Na nossa rotina sempre conectada, provavelmente a sua timeline seria inundada por fotos e vídeos (e memes) retratando o fim do mundo ou duvidando dele. Mas o que aconteceria se você não tivesse acesso à internet e à TV? Sem recursos alternativos para se manter informado, você não teria acesso a rumores efragmentos de informações, e não seria capaz de compreender os eventos na sua totalidade. Essa falta de compreensão (gerada pela falta de conexão) é a temática central do filme O Mundo Depois de Nós, produção original da Netflix.

Escrito e dirigido por Sam Esmail (criador da série Mr. Robot), com base no livro de Rumaan Alam, o longa acompanha uma família rica de Nova York cuja matriarca, Amanda (interpretada por Julia Roberts), decide alugar uma mansão na praia para passar o final de semana na companhia do marido, Clay (Ethan Hawke), e dos filhos, Archie (Charlie Evans) e Rose (Farrah Mackenzie). A princípio, tudo parece perfeito. A casa alugada é enorme e os filhos brincam na piscina o tempo todo. Mas não demora até as coisas ficarem estranhas. O primeiro (grande) estranhamento acontece quando a família vai até a praia e quase é atropelada por um enorme navio desgovernado que invade a areia. Depois disso, cai o sinal da televisão e da internet, e os animais da região começam a se comportar de maneira estranha.

A tensão daquela situação aumenta certa noite, quando a família recebe a visita de G.H. (Mahershala Ali) e sua filha Ruth (Myha’la), que alegam ser os donos da casa. A dupla afirma que precisou retornar mais cedo por causa de um apagão que aconteceu em Nova, que ameaça fazer a cidade entrar em colapso. Num primeiro momento, é impossível ter certeza se a informação trazida pelos dois é verdadeira ou falsa, e Esmail é hábil ao explorar a tensão estabelecida a partir dessa incerteza dando atenção a pequenos detalhes, como o fato de G.H. ter a chave do armário de bebidas (o que comprovaria que ele é dono da casa), mas parece não saber qual chave abre o armário (sugerindo que, talvez, as chaves não sejam dele).

Ainda assim, Clay convence Amanda a aceitar a presença de G.H. e Ruth, e as duas famílias iniciam uma convivência forçada. E embora o roteiro deixe claro logo em seguida que G.H. é mesmo o dono daquela casa, também fica evidente que ele não está contando toda a verdade para os seus hóspedes – o que, novamente, só aumenta a tensão daquela situação. Eventualmente as duas famílias encontram um equilíbrio que possibilita a sua convivência – equilíbrio este em parte alimentado por tensão sexual –, mas o filme usa essa interação entre os personagens para fazer um comentário nada sutil a respeito do racismo estrutural e do colonialismo.

Em certo momento é sugerido que Amanda não acredita em G.H. e Ruth porque eles são negros. Ou seja, segundo essa afirmação, Amanda não acreditaria que uma família negra teria condições de comprar uma casa como aquela – ou frequentaria a ópera como forma de lazer. Já o colonialismo é explicitado pela maneira como os personagens são distribuídos dentro da casa. Afinal, Amanda e sua família branca continuam habitando uma casa que não é sua, enquanto os verdadeiros donos, negros, dormem no porão. Mas se a crítica apresentada pela obra é evidente, o restante da narrativa é muito mais enigmático e propositalmente confuso.

Existe, em O Mundo Depois de Nós, ao mesmo tempo um excesso e uma falta de informações – e isso se traduz na abordagem visual adotada pelo diretor. Sam Esmael emprega um estilo nada sutil na sua composição visual. Sua câmera está em constante movimento, entrando e saindo dos cômodos, subindo e descendo pela casa, ou atravessando vidros. Num primeiro olhar parece não existir, necessariamente, um motivo dentro da narrativa que inspire esse tipo de composição; a inventividade visual do diretor parece estar ali apenas para chamar atenção para si. Porém, é possível argumentar que tais ornamentos narrativos sirvam ao propósito de exaurir do filme um significado único, impossibilitando assim uma leitura esclarecedora.

Um exemplo dessa impossibilidade de uma única leitura se dá no uso excessivo de planos em plongée (quando a câmera é posicionada acima dos personagens, apontando para baixo). Esse tipo de enquadramento tende a sugerir o ponto de vista de algo maior em relação aos personagens. Planos similares foram usados no terror recente Ninguém Vai Te Salvar, e eles simbolizavam a visão dos alienígenas em relação aos seres humanos. Seria este o caso aqui? Certamente O Mundo Depois de Nós fornece evidências para esse tipo de interpretação, como as visões que temos de satélites no espaço ou da superfície da Lua. Ao mesmo tempo, também existem inúmeras evidências apontando em outras direções, o que só gera mais dúvidas.

Porém, é a falta de uma explicação coerente e abrangente que move o filme. Não se trata de tentar explicar como os personagens enfrentam um possível fim do mundo, mas sim de expressar o desnorteamento causado por uma catástrofe global. Se você estivesse na mesma situação, também não teria acesso a todas as informações e não saberia explicar tudo que via. Talvez nem acreditasse que algo de fato estava acontecendo. Ou poderia acreditar que se tratava de um ataque externo. Ou que tudo é parte de um plano de autodestruição. Para cada uma dessas teorias, você provavelmente encontraria evidências corroborando e contrariando os seus argumentos. E não teria certeza de nada.

Diante dessa desconexão (literal e metafórica) com o restante do mundo, só nos restaria recorrer àquilo que é palpável e confiável – como um DVD guardado na prateleira.

Assista ao trailer de O Mundo Depois de Nós: