Donos de uma carreira curta, porém impressionante, os cineastas Aaron Moorhead e Justin Benson cravaram seus nomes na pedra do cinema independente com seus longas anteriores, Resolution, Primavera e O Culto, que comprovaram repetidas vezes o talento da dupla de jovens diretores para criar tramas inteligentes, intrincadas e instigantes. Diante de tamanho sucesso, é decepcionante constatar que o raio não cai quatro vezes no mesmo lugar. Synchronic, o mais novo trabalho da dupla, é uma obra problemática, que se posiciona a favor daquilo que visava criticar.
Escrito por Benson, o roteiro acompanha Steve (Anthony Mackie) e Dennis (Jamie Dornan), dois paramédicos cuja rotina tem se tornado cada vez mais atribulada devido a uma nova droga sintética em circulação nas ruas. Chamada de synchronic, a substância foi criada com o intuito de simular os efeitos de um chá alucinógeno, mas ela faz mais do que isso; ela envia os usuários mais jovens à uma viagem, literal, através do tempo. A expansão da mente é tamanha que a própria fábrica do tempo e espaço se dobra diante de um usuário chapado demais para compreender o que está acontecendo.
Visualmente, a obra é impressionante. A narrativa é cheia de rimas visuais e imagens significativas que sugerem a continuidade do tempo e a circularidade da história. E assim como nos trabalhos prévios dos diretores, não há uma grande preocupação com explicações detalhadas sobre aquela realidade; os filmes de Benson e Moorhead funcionam dentro da lógica da crença, e não do pragmatismo. Outro ponto positivo é a amizade entre os dois personagens principais, que é muito bem desenvolvida. Detalhes a respeito da admiração (misturada com ciúmes) que um tem pelo outro são notáveis em diversos momentos da trama.
Tudo isso é o que está visível na superfície. Por baixo, Synchronic se propõe a discutir a violenta história dos Estados Unidos – e de grande parte do mundo –, uma história construída em cima de extermínios, de racismo e do apagamento de diferentes culturas. É uma temática importante, atual e necessária, mas é abordada de maneira equivocada. Afinal, enquanto se propõe a fazer uma crítica ao racismo de épocas passadas, o roteirista também se utiliza de artifícios que reforçam a visão de mundo que ele queria criticar.
Explico: diante das recentes – e necessárias – discurssões acerca da representatividade dentro do cinema de gênero (expostas no excelente documentário Horror Noire), é significativo que este longa-metragem tenha um protagonista negro. Ao mesmo tempo, é problemático que este protagonista seja usado apenas para servir outra pessoa, branca. Steve é um herói. Não há dúvidas. Mas a narrativa arquiteta situações que exigem o seu sacrifício em prol do homem branco – dando-lhe, inclusive, um câncer no cérebro para que os efeitos da droga sejam mais eficazes nele.
Até as tentativas de oferecer maior profundidade ao desenvolvimento de Steve saem pela culatra. É o caso da imagem dos caixões que emergiram em meio a uma tempestade, repetida ao longo de todo a exibição. Trata-se de uma lembrança traumática de Steve, de quando ele presenciou os corpos da sua família durante uma tempestade. Mas tais imagens, embora impactantes, servem de âncora emocional para Dennis, e não para Steve. Dentro do filme, é Dennis quem faz uso dessas imagens. É ele quem explica o significado delas e, ao fazê-lo, imediatamente as associa a si.
Este poderia ser um exemplo de como o homem branco rouba e se apropria da história do homem negro. E se fosse, seria uma crítica assertiva. Mas não é. Pois Synchronic não apenas corrobora com essa visão, como ainda culmina em uma das escolhas mais infelizes da carreira da dupla de diretores. Nesse ponto, vou ser obrigado a discutir o final do longa. Portanto, fica o aviso de spoilers nos parágrafos finais. Também peço licença para introduzir uma discussão acadêmica com o intuito de reforçar meu argumento.
Em seu artigo intitulado Cinethetic Racism: White Redemption and Black Stereotypes in “Magical Negro” Films, o autor Matthew W. Hughey discute uma técnica narrativa racista cujo intuito é reforçar, consciente ou inconscientemente, a lógica da subserviência negra. O autor apresenta um estudo quantitativo em obras nas quais os personagens negros têm algum tipo de poder sobrenatural e são mostrados apenas servindo aos personagens brancos. As vontades e os anseios das pessoas negras são deixados de lado em prol da felicidade e da sobrevivência das pessoas brancas.
Produções como Dogma, Lendas da Vida, Um Homem de Família, entre muitos outros trabalharam com essa temática apoiada em um ideal racista que dá ao homem negro o papel de guia espiritual do homem branco. Talvez o exemplo mais forte disso seja À Espera de um Milagre, no qual um homem negro falsamente acusado de assassinato escolhe se sacrificar, mesmo depois de ter a sua inocência tenha sido comprovada. Temáticas como esta são reminiscentes da época da escravidão servem para afastar a figura da pessoa negra do âmbito da sociedade civilizada, e aproximá-la da natureza – tornando-o, assim, menos humano.
Synchronic reforça alguns desses preconceitos. Assim como foi destacado na teoria de Matthew W. Hughey, aqui o herói negro também usa os seus poderes sobrenaturais (a sua capacidade de viajar no tempo) em prol do homem branco e se sacrifica com o intuito de garantir a manutenção do núcleo familiar caucasiano.
Esta escolha destoa das produções contemporâneas de gênero. Em meio à revolução causada por Corra!, filmes com temáticas sociais floresceram nos últimos anos. Esta é uma revolução extremamente importante. Porém, é preciso tomar cuidado com o tipo de abordagem utilizado nessas narrativas para não repetir os erros do passado.