A história do cinema é recheada de fracassos. Obras ambiciosas como Blade Runner e Brazil – o filme não fizeram sucesso de público e crítica à época do seu lançamento.
Mais do que isso, foram filmes que deram prejuízo para os seus estúdios, demorando anos, às vezes até décadas, para ganharem o seu devido reconhecimento.
Porém, poucos casos de fracasso são tão contundentes como foi o do épico de faroeste O Portal do Paraíso, dirigido por Michael Cimino. E poucos são os filmes que merecem tanto este reconhecimento tardio.
Foi pensando nisso que preparei este post especial sobre a obra. Ao longo deste texto falarei sobre:
- O que é O Portal do Paraíso
- A expectativa gerada pelo filme
- Os problemas ocorridos durante a produção
- Como foi a recepção da crítica
- Quais foram as consequências do fracasso
- E como está se dando o ressurgimento do filme.
Antes de partirmos para o filme em si, porém, precisamos entender melhor o que estava acontecendo na época da sua produção.
O contexto histórico é essencial para que possamos compreender o fracasso de O Portal do Paraíso. Portanto, é necessário voltar alguns anos.
As décadas anteriores a O Portal do Paraíso
O final da década de 1960 e, principalmente, a década de 1970 foram palco de uma verdadeira revolução na indústria cinematográfica.
Impulsionados pelo lançamento de Bonnie e Clyde, os estúdios revolucionaram a maneira como a produção é regida e deram aos diretores um poder que eles nunca tiveram antes.
Foi o fim da Hollywood clássica e o nascimento de um período curto porém essencial para a história do cinema: a chamada Nova Hollywood.
De início, os diretores tiveram controle de filmes de pequenos orçamentos, como é o caso de Sem Destino (1969), de Dennis Hopper.
Mas o sucesso financeiro de produções como esta acabou incentivou os estúdios a investirem cada vez mais em produções ambiciosas.
Liberdade criativa e talento andavam juntos nessa época. E Hollywood estava sempre de olho em novos projetos de cineastas em ascensão.
Um nome que vinha ganhando muita notoriedade ao longo da década de 1970 era o de Michael Cimino.
O início da carreira de Michael Cimino
Michael Cimino foi um cineasta nova-iorquino nascido em 1939. Ele ingressou no cinema como roteirista em 1972, escrevendo o filme Corrida Silenciosa.
No ano seguinte, ele escreveu o roteiro de Magnum 44, filme da franquia Dirty Harry estrelada por Clint Eastwood.
Cimino repetiu a parceria com o ator em 1974, em sua estreia na direção. O filme em questão, O Último Golpe, é uma comédia de ação co-estrelada por Jeff Bridges.
Em 1978, Michael Cimino lançou aquele que seria o seu maior sucesso: O Franco Atirador.
O filme, um retrato frio e violento da Guerra do Vietnã, foi indicado a nove Oscars e venceu cinco categorias, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor.
O sucesso de O Franco Atirador colocou o diretor no radar dos grandes estúdios e abriu caminho para projetos ainda mais ambiciosos. Foi então que nasceu O Portal do Paraíso
O que é O Portal do Paraíso?
O Portal do Paraíso é um filme estadunidense do gênero western lançado em 1980. A obra é a dramatização de um conflito histórico conhecido como Johnson County War.
Ocorrido entre os anos de 1889 e 1893, este conflito foi organizado por criadores de gado que viam os imigrantes da região como uma ameaça ao seu monopólio.
No filme, os criadores de gado tem em mãos uma lista com 125 nomes de pessoas que precisam ser eliminadas e recrutam mercenários dispostos a matá-las.
O conflito, porém, é empurrado para o final do filme (que tem quase quatro horas de duração). O resto do tempo é dedicado à rotina dos personagens.
Conhecemos melhor o funcionamento daquela cidade e os seus principais moradores, como é o caso de James Averill (interpretado por Kris Kristofferson), xerife da cidade.
Averill tenta impedir a ameaça que se aproxima, ao mesmo tempo que mantém um relacionamento com a prostituta Ella Watson (Isabelle Huppert), um dos nomes da lista.
Ella, por sua vez, divide o seu coração com Nathan D. Champion (Christopher Walken), um antigo amigo de Averill que trabalha para os criadores de gado.
Construindo a narrativa de maneira lenta, Cimino mostra os conflitos entre os personagens crescendo até entrarem em ebulição.
A expectativa por O Portal do Paraíso
A grandiosidade do projeto, somada ao nome de Michael Cimino, aumentaram as expectativas acerca do filme.
Todos os estúdios entraram na disputa pelo projeto, mas quem acabou ganhando foi a United Artists, um dos estúdios mais dispostos a se arriscar em projetos ambiciosos.
Afinal, a ambição estava no cerne do estúdio.
Um dos criadores da United Artists foi ninguém menos do que Charles Chaplin, vendo no seu estúdio uma possibilidade de fugir do controle predatório hollywoodiano.
A United Artists tinha grandes planos para O Portal do Paraíso.
O executivo Stephen Bach conta, em seu livro Final Cut, que a expectativa era que O Portal do Paraíso se tornasse o Doutor Jivago ou o Lawrence da Arábia do estúdio.
Em teoria, a comparação seria positiva para a United Artists, pois, diferente desses filmes citados, O Portal do Paraíso se passava todo nos Estados Unidos.
O patriotismo pesou bastante.
Ansiosos para realizar o filme, os executivos do estúdio aceitaram o grandioso orçamento de U$ 11,6 milhões.
E, pensando na temporada de premiação, eles queriam um lançamento até o natal de 1979, algo que seria bem difícil de conseguir, devido ao escopo da produção.
Para dar conta desse objetivo, Cimino fez o estúdio concordar em pagar quaisquer gastos a mais que ele tivesse para garantir que o filme ficasse pronto a tempo.
O estúdio aceitou o acordo, liberando o diretor de qualquer responsabilidade acerca do orçamento. Mesmo se não conseguisse cumpri o prazo, o diretor não seria responsabilizado.
Isso foi apenas o começo dos problemas do filme, que teve uma produção extremamente complicada.
Os problemas de produção
O Portal do Paraíso teve uma produção bastante conturbada. Os excessos e o perfeccionismo do diretor atrasaram as filmagens, aumentando consideravelmente o custo do filme.
O jornalista Ryan Lambie escreveu uma matéria bastante completa a respeito dos problemas de produção ocorridos durante as filmagens. Entre os problemas listados, estão:
- Excesso de takes: Cimino fazia um mínimo de 32 takes para cada enquadramento. Para algumas cenas, foi necessário mais de 50 takes até o diretor ficar satisfeito. Com isso, se perdeu muito tempo em cenas que duravam apenas segundos no filme.
- Localização da batalha: O diretor escolheu uma localização específica para a cena da batalha final. O problema é que o local ficava a três horas de distância do QG de produção. Perdeu-se muito tempo de filmagem apenas se deslocando até a locação.
- Sistema de irrigação: Para esta mesma cena final, Cimino queria que o local fosse coberto com grama. Para isso, foi necessário construir um grandioso – e caro – sistema de irrigação para a grama crescer naquele local árido.
- Filmagens demoradas: Uma das histórias a respeito dos atrasos de filmagens conta que o elenco passou uma manhã inteira esperando as nuvens se moverem, para liberar a luz do sol. Quando alguém sugeriu fazer uma pausa para o almoço, Cimino ficou irritado, dizendo que o filme era mais importante do que o almoço.
- Acidentes durante as filmagens: O excesso de figurantes e a extensão das filmagens acabaram causando diversos acidentes nas gravações. É difícil dizer, ao certo, quantos acidentes aconteceram ao longo de todo o filme, mas foram reportados um total de 16 acidentes em um único dia.
Além disso, Cimino também teve problemas com os produtores, que discordavam com a escolha da atriz francesa Isabelle Huppert como a base de um triângulo amoroso com Kris Kristofferson e Christopher Walken.
O diretor comprou a briga e manteve a atriz. E isso talvez tenha dado a Cimino a confiança que ele poderia fazer o que quisesse e os produtores iam acabar se dobrando para ele.
Ao final, o filme acabou custando cerca de US$ 35 milhões, valor que seria somado aos quase US$ 10 milhões gastos com publicidade.
E o pior é que Cimino tinha cerca de 300 quilômetros de filme rodado e precisava reduzi-lo para um filme de um pouco mais de duas horas.
O filme (com quase quatro horas de duração) só estreou em 18 de novembro de 1980. E a recepção da crítica não foi nada calorosa.
Recepção da crítica
Conforme apontado por Christopher Karr em sua matéria sobre os 40 anos do filme, as controvérsias envolvendo O Portal do Paraiso são mais conhecidas do que o filme em si.
Isso foi muito influenciado pela reação da crítica na época do lançamento. O crítico do The New York Times, Vincent Canby, referiu-se à obra como “um desastre não qualificado”.
Seu texto dá algumas dicas sobre os motivos que o incomodaram tanto: “é provavelmente o primeiro western a celebrar o papel desempenhado pelos europeus da Europa Central e Oriental no assentamento do oeste americano”, escreve ele em certo momento.
Ou seja, a apropriação feita por Cimino de um gênero tipicamente americano e a subversão deste gênero – ao mostrar os cowboys como vilões – não caiu tão bem.
Canby também menciona as diferentes línguas faladas pelos imigrantes, todas traduzidas por legendas (como se isso fosse um demérito do filme) e reclama que os figurantes “agem da maneira irracional”.
O crítico Roger Ebert também partilhou dessa visão. Em seu texto, ele afirma que Cimino filmou os imigrantes como se fossem uma multidão.
O que nenhum dos dois não menciona, porém, é a tentativa de Cimino de humanizar os personagens.
Um exemplo disso é a cena em que é lido os nomes que constam na lista de mortes e, em seguida, é mostrado um rostos daquelas pessoas. Eles não são uma simples menção numa lista. São pessoas, com nomes e rostos.
Perto do final do texto, os críticos chegam ao ponto principal.
“Nada no filme funciona corretamente. Por todo o tempo e dinheiro investido, parece algo construído às pressas, um navio que desliza direto para o fundo durante seu batizado.” disse Canby.
Já Roger Ebert menciona o orçamento do filme duas vezes ao longo do seu texto, após chamar O Portal do Paraíso de “um dos filmes mais feios que eu já vi”.
Ou seja, em vez de os esperados elogios, o filme foi classificado como um “fiasco pretensioso, obscuro, sinuoso, extravagante”.
Por mais que tenha recebido elogios na Europa, foi a reação da crítica americana – e, consequentemente, do público – que gerou péssimas repercussões.
As consequências
Devido à péssima recepção, o estúdio retirou o filme de cartaz – a pedido de Cimino – para o diretor se dedicar a uma nova montagem, diminuindo a duração do longa.
A nova versão foi lançada em abril de 1981, mas também não agradou.
As consequências do desastre foram maiores do que o filme em si. A companhia Transamérica, dona da United Artists, vendeu o estúdio e abandonou a indústria do cinema por completo.
Já O Portal do Paraíso foi considerado o início do fim da Nova Hollywood.
Ou seja, a época de grandes liberdades criativas estava chegando ao fim. Os estúdios e os executivos estavam retomando o controle das produções.
O fracasso também teve consequências nas carreiras dos envolvidos.
Kris Kristofferson afirma que o filme prejudicou a sua carreira, tirando-o da lista dos principais atores de Hollywood.
Porém, tanto ele quanto a atriz Isabelle Huppert afirmam que o diretor Michael Cimino foi quem mais sofreu com isso.
Em uma entrevista, Huppert reforçou sua admiração pelo cineasta, afirmando que ele era um dos grandes cineastas americanos. Ela também disse que ele nunca se recuperou daquele fracasso.
Kristofferson concorda com a afirmação. “Aquilo o destruiu completamente”, explicou o ator.
Cimino só conseguiu fazer outro filme cinco anos depois. E embora sua carreira se estenda por quatro décadas, ele só dirigiu um total de sete longas-metragens.
E nenhum dos filmes subsequentes à O Portal do Paraíso tiveram o escopo de sua grande produção.
Os orçamentos diminuíram ao ponto de suas produções se tornarem “seguras” para o estúdio.
E foi só no final da sua vida (ele morreu em 2016) que Cimino começou a ver O Portal do Paraíso receber o seu merecido reconhecimento.
Conclusão: o ressurgimento
Nos últimos anos O Portal do Paraíso ganhou exibições especiais nos festivais de Berlim, Toronto e Veneza.
Ao contrário do fracasso anterior, a exibição no Festival de Veneza terminou com aplausos de pé. Cimino contou que foi a primeira que ele viu o filme desde a estreia na década de 1980.
Além da restauração na duração original, o filme também ganhou um lançamento em Blu-Ray pela distribuidora Criterion.
Hoje em dia, o filme já é reconhecido como um clássico. São vários os elogios que o filme recebeu, muitos deles estampados na capa do DVD e do Blu-Ray.
Além disso, O Portal do Paraíso também aparece na lista 100 Grandes Filmes Americanos, feita pela BBC Culture.
Conforme afirma Karr em sua matéria: “Indiscutivelmente, nenhum outro filme, antes ou depois, tirou tanto o nosso fôlego, e nenhum cineasta tentou realizar sua visão com tanta firmeza, alguns podem dizer teimosia, e compromisso com a autenticidade”.
O Portal do Paraíso já havia garantido o seu lugar na história do cinema desde o seu lançamento. Mas foi só recentemente que o filme chegou lá pelos motivos certos.
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