Crítica | Entre Nós

Logo no início de Entre Nós, novo trabalho do cineasta Paulo Morelli (Cidade dos Homens) feito em parceria com seu filho Pedro Morelli (série Contos do Edgar), o personagem Felipe, interpretado por Caio Blat (Alemão), é mostrado sozinho em quadro, numa composição que ilustra a solidão em ele se encontra, algo que contrasta diretamente com o título do filme (que aparece em seguida). Apesar de o nome passar uma falsa ideia de coletividade, o longa dos Morelli retrata na verdade uma dolorosa e solitária batalha do seu protagonista, que não encontra naquele grupo de amigos o conforto e segurança de estar no meio das pessoas que ama, mas sim o medo de que aqueles indivíduos (por conhecê-lo melhor do que ninguém) consigam enxergar através da sua persona, e através dos seus segredos.

Abordando de maneira eficaz a mudança dos personagens com o passar do tempo, o texto faz questão de mostrar um grupo de adultos bastante distinto daqueles jovens vistos no início do filme. Casais se separaram e outros se formaram, aqueles que continuaram juntos agora têm problemas de relacionamento, e jovens inconsequentes se tornaram adultos frustrados (e medicados). É interessante notar também como o próprio conceito de amizade cambiou nesse tempo, já que fica claro que eles não se gostam mais, e que o único motivo para se reunirem novamente é por causa de uma promessa feita 10 anos antes. Em certo momento, por exemplo, Felipe repreende Cazé (Júlio Andrade, de Cão Sem Dono) por conta da crítica que este escreveu sobre o seu último livro, dando a entender que a “amizade” deles deveria ser maior do que o profissionalismo do colega. Cazé, por sua vez, responde que levou isso em consideração quando escreveu o seu texto, e foi por isso que “pegou leve” com Felipe.

Os diretores são hábeis ao criar uma interessante e significativa rima visual, ao colocar o protagonista gritando em dois momentos distintos (no acidente e na cachoeira) como forma de ilustrar dois tipos diferentes de dor que ele sente (dor física e dor psicológica), ao mesmo tempo em que mostram que ele só consegue se expressar naturalmente quando ninguém mais pode ouvi-lo (o que diz muito sobre a sua natureza reservada). Da mesma maneira, a direção de fotografia de Gustavo Hadba (Faroeste Caboclo) merece destaque por realizar uma composição que abusa das sombras e do contraluz, visando manter os personagens constantemente na penumbra, numa alusão à atmosfera sombria da relação daquelas pessoas. Igualmente eficaz é a trilha sonora de Felipe Junqueira (A Busca), que investe numa música melancólica, até durante uma cena de sexo, que é vista não como um ato de amor, mas de escapismo.

Mais do que um longa sobre reencontro de amigos, Entre Nós é um detalhado estudo de personagem, que tem como foco uma pessoa igualmente desprezível e fascinante. E apesar de não partir de uma premissa necessariamente original, isso não impede que ele resulte em um filme nada menos do que excelente.

(Atenção! O trecho a seguir contém spoilers. Só leia se já tiver assistido ao filme)

A Metamorfose de Felipe

É clara a ideia dos cineastas de homenagearem o livro A Metamorfose, de Franz Kafka, por meio de citações literárias (com os personagens ditando o início do livro) e visuais (através da imagem de um escaravelho deitado de costas, sem conseguir se levantar, numa alusão clara a uma sequência famosa do livro). Mais do que isso, porém, o filme abre um leque de possibilidades de interpretações baseadas na obra de Kafka.

Pessoalmente, acredito que o livro (que trata de um homem que, sem motivo aparente, se transforma num inseto gigante) seja usado como uma referência à mudança física de Felipe, que parece tentar “se transformar” em Rafa (Lee Taylor, de Estamos Juntos), deixando até a sua barba crescer para ficar mais parecido com o amigo morto. Escritor medíocre, Felipe aparenta pensar que sua metamorfose traria consigo o talento do colega, algo que não acontece, visto que ele passou o restante da sua carreira tentando (sem sucesso) escrever romances policiais.

Ao mesmo tempo, também é possível entender o uso de A Metamorfose para reforçar a ideia da solidão que o protagonista sente, em parte por causa dos segredos que esconde e em parte por ser o único escritor bem-sucedido daquele grupo (no livro, Gregor Samsa continua sendo cuidado pela sua família, mas sua diferença física o mantinha separado dos outros, sozinho dentro do quarto).

Porém, ao contrário do livro, a diferença de Felipe é imposta por ele próprio. É ele quem esconde os seus segredos, é ele que tem medo de trazê-los à tona (e admite que se sentiria livre se as pessoas soubessem que ele roubou o livro de Rafa) e é ele que parece ser capaz de tudo para mantê-los escondidos (em certo momento até cogita cometer assassinato).

E se em A Metamorfose, Gregor Samsa faz de tudo para colocar-se de pé sozinho, no filme o escaravelho virado de costas tem a ajuda de Gus (Paulo Vilhena, de As Melhores Coisas do Mundo) para seguir em frente. Sendo assim, é possível supor que Felipe encontraria a salvação na companhia dos seus amigos, mas em meio à sua covardia, acaba escolhendo voltar para a prisão na qual ele mesmo se colocou.

(idem | Drama | Brasil | 2013 | 100 min.)
Direção: Paulo Morelli e Pedro Morelli
Roteiro: Paulo Morelli e Pedro Morelli
Elenco: Caio Blat, Carolina Dieckmann, Júlio Andrade, Martha Nowill, Maria Ribeiro, Paulo Vilhena, Lee Taylor.