Existe uma linha tênue – e muitas vezes quase imperceptível – que separa uma narrativa densa que consequentemente se torna polêmica, e um filme que coloca a polêmica como seu objetivo principal. Apesar de sempre trilhar por essa linha, acredito que o realizador dinamarquês Lars von Trier nunca a tinha atravessado tanto como ele faz em Ninfomaníaca – Volume 1.
Curiosamente (ou não) as maiores controvérsias em relação à Ninfomaníaca não se dão necessariamente a respeito da sua pesada temática sexual, que apesar de conter sequências bastante fortes, não chegam nem perto do que o próprio cineasta já fez em outros trabalhos, como em Os Idiotas; mas sim na reação prévia do público ao filme. Sim, Ninfomaníaca já era polêmico desde que foi concebido, e essa sensação só aumentou com o tempo, assim como a quantidade de pessoas interessadas em assisti-lo. E é exatamente ao tentar fazer vale essa expectativa de sua nova audiência que reside o maior defeito do longa.
Particularmente, nunca gostei muito de Lars von Trier, exatamente por achar que ele está sempre caminhando naquela linha mencionada no primeiro parágrafo. Mas ainda assim sou capaz de reconhecer seu talento narrativo em alguns momentos – como em Anticristo, que adoro – e até seu estilo de humor característico – exacerbado no ótimo O Grande Chefe. Mas, independente de gostar ou não do diretor, pelo menos antes eu conseguia respeitá-lo por ele aparentar ser um autor, alguém que exibe a sua visão de cinema para o mundo. Em Ninfomaníaca, a impressão que fica é que ele faz o oposto: modifica a sua visão para encaixá-la no mundo.
O roteiro – que conta a história de uma mulher que narra as suas aventuras sexuais para um senhor que a encontrou na rua depois que ela aparentemente foi espancada – é o mais didático que von Trier já escreveu, algo auxiliado pela sua direção extremamente exemplificativa. Todas as informações, e todas as teorias, são visualizadas e revisadas, para não deixar nenhuma dúvida naquele espectador não familiarizado com o trabalho do cineasta – que fique claro que não condeno o fato de Lars von Trier queira atingir um público maior; meu problema reside no fato dele duvidar da inteligência da sua nova plateia.
Alternando-se entre momentos ótimos e outros bastante duvidosos (entre o velho e o novo Lars von Trier, por assim dizer), o texto traz alguns questionamentos interessantes, como o fato de Joe (Charlotte Gainsbourg) afirmar que não é religiosa, mas que se considera uma pecadora, algo que Seligman (Stellan Skarsgård) não consegue entender, mas que define muito bem a personalidade masoquista dela, buscando constantemente novas formas de se punir. Aliás, é interessante notar que ele, que também se diz ateu, surge quase como um padre, ouvindo suas confissões e perdoando-a por tudo o que ela fez.
Mas instantes como esse logo dão lugar a filosofias baratas, e bastante clichês (ou seja, de fácil assimilação para seu novo público), como quando Seligman diz aceitar as atitudes de Joe e dá a “brilhante” explicação de que se ela tem asas, ela tem que voar. Em outro instante ainda, quando questionada sobre como se sentiu depois de destruir uma família, ela apenas afirma que “para fazer uma omelete, é preciso quebrar alguns ovos”.
Diálogos como esses poderiam até denotar certa ignorância por parte dos personagens, o que seria narrativamente mais aceitável, mas esse não é o caso aqui, uma vez que von Trier faz questão de mostrar os dois como seres cultos, algo que é destacado através das suas conversas. Aliás, a associação que eles fazem entre sexo e música resulta talvez no melhor momento do filme. É uma pena, porém, que antes disso sejam apresentadas outras associações que não tem o mesmo impacto, como aquele que compara sexo com pesca.
Encerrando o longa com uma cena bastante emblemática Ninfomaníaca – Volume 1 gerou publicidade o suficiente para quebrar um paradigma e ser exibido em circuito comercial (seus filmes, normalmente, ficavam relegados aos cinemas “de arte”). É uma pena então que em vez de passar a sua mensagem, Lars von Trier decida também se tornar comercial (no pior sentido da palavra), ainda que mantendo uma áurea de polêmico.
(Nymphomaniac – Volume I | Drama | Dinamarca/Alemanha/França/Bélgica/Reino | 2013 | 118 min.)
Direção: Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier
Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stacy Martin, Stellan Skarsgård, Uma Thurman, Christian Slater, Connie Nielsen, Shia LaBeouf.