Em seu artigo Film Bodies: Gender, Genre, and Excess, a autora Linda Williams discorre sobre os chamados “gêneros corporais”. Tais gêneros, o terror, o pornô e o melodrama, caracterizam-se por provocarem uma reação física no espectador (medo, excitação e emoção), reação essa que mimetiza aquela sentida pelos próprios personagens.
É por isso que a comédia não é considerada um gênero corporal. Embora cause uma reação física (o riso), tal reação não é partilhada pelo protagonista; rimos dele, e não com ele. Entretanto, não é correto afirmar que nos emocionamos e choramos em simetria com os personagens do melodrama. Em muitos casos, a estrutura do filme prioriza e amplia o sofrimento, fazendo com que a nossa emoção preceda a do protagonista. É o que acontece no excelente Desencanto (Brief Encounter, 1945), de David Lean.
Escrito por Noël Coward (Nosso Barco, Nossa Alma), com base na sua própria peça de teatro, o roteiro acompanha Laura Jesson (Celia Johnson), uma mulher suburbana de meia idade, casada e mãe de dois filhos, cuja rotina se resume a cuidar dos afazeres da casa e, uma vez por semana, pegar o trem até à cidade. Nessas ocasiões, ela aproveita para trocar um livro da biblioteca e assistir a um filme no cinema, antes de retornar à sua rotina doméstica.
Certo dia, porém, seu caminho se cruza com o de Alec Harvey (Trevor Howard), um médico que também trabalha na cidade uma vez por semana. Os dois têm um encontro casual (ele ajuda a tirar uma sujeira do olho dela) e cada um segue com a sua vida. Eventualmente, os caminhos dos dois se cruzam de novo e de novo, e não demora até que esses breves encontros se tornem algo mais. Sentimentos florescem em um curto período de tempo, mentiras são contadas com o intuito de manter as aparências, e, aos poucos, a estabilidade familiar é colocada sob ameaça.
Estes são os fatos cronológicos. Mas não é assim que os vemos. A montagem não-linear prioriza a emoção (ou melhor, o sofrimento) em detrimento da temporalidade. Logo de início, vemos o casal no seu último encontro. A tristeza está estampada nos rostos dos dois, que desejam aproveitar cada um dos seus derradeiros minutos juntos. Mas o encontro é interrompido pela chegada de uma conhecida de Laura. Ao final, Alec se despede e sai da vida dela, para sempre. Chegando em casa, a protagonista lembra o seu passado recente e é então que tomamos conhecimento do romance deles.
O sentimento agridoce se torna amargo ao começarmos essa história já sabendo como ela termina. Não se trata de uma partilha de emoções entre público e personagens; nós sabemos mais do que eles. A estrutura em flashback nos entrega, desde o início, o final infeliz. Enquanto eles riem, nós choramos. E quando eles choram, nós choramos mais ainda.
Conhecido por suas narrativas extensas e grandiosas, o realizador britânico David Lean exibe aqui um estilo muito mais contido. Economizando ao máximo os recursos visuais, Lean mantém o seu foco quase ininterruptamente em Laura. Suas poucas saídas pela tangente (como ao dar atenção ao casal da lanchonete da estação de trem) em nenhum momento sacrificam o olhar direcionado do cineasta. Não há, por exemplo, nenhuma cena apresentando-nos à família do Dr. Harvey, mas nem por isso deixamos de compreender a culpa que ele sente diante daquele romance.
Da mesma maneira, embora retrate o tédio da vida suburbana da sua protagonista (fato que a empurra na direção da aventura romântica), o diretor nunca é apelativo. Os filhos de Laura lhe causam preocupações, assim como o marido dela parece alheio ao mundo à sua volta. Mas aquela não é uma realidade opressiva; é apenas ordinária.
Adotando uma montagem repleta de fusões, o filme sugere uma passagem de tempo fluída. Mais uma vez, a montagem prioriza a emoção. Afinal, quanto mais rápida a passagem do tempo, mais cedo chegaremos àquela fatídica cena inicial. E embora já estivéssemos a esperando, nada nos prepara para aquele encerramento.
Compartilhamos o desespero de Laura (amplificado pelo uso de ângulo holandês), num momento que gera ainda mais choro e ainda mais emoção, tanto da nossa parte quanto da dela. A noção do gênero corporal tenta encontrar o seu equilíbrio ao final, mas deixa a dúvida: quem sofreu mais, eles ou nós?