Mike Flanagan encontra seu veículo perfeito nessa adaptação de Stephen King.
Quem me acompanha aqui já deve saber que minha admiração pelo cineasta Mike Flanagan (na minha opinião, um dos melhores diretores de terror da atualidade) reside no fato de que seus personagens frequentemente priorizam a racionalidade nas suas ações. E se isso já era comum em trabalhos anteriores como O Espelho, Hush, Ouija: Origem do Mal e, em menor grau, em O Sono da Morte, agora em Jogo Perigoso (Gerald’s Game) ele encontrou o veículo perfeito para o seu estilo, ao comandar uma narrativa quase toda passada no subconsciente da sua protagonista.
Escrito pelo próprio realizador em parceria com Jeff Howard (Ouija: Origem do Mal), e com base no livro homônimo de Stephen King, o roteiro acompanha Jessie (Carla Gugino) e Gerald (Bruce Greenwood), um casal em crise que resolve passar um final de semana numa casa de campo com o objetivo de tentar apimentar e, na cabeça dele, melhorar a relação. Gerald toma um comprimido de Viagra e parte para satisfazer a sua fantasia: algemar a esposa na cama. Mesmo que a contragosto, ela aceita a “brincadeira” do marido, mas desiste quando descobre uma perversão dele envolvendo estupro.
Algemada, Jessie quer desistir daquele jogo sádico, mas ele continua insistindo, o que gera uma discussão que traz à tona todos os problemas do casal. Tudo piora quando, em meio à briga, Gerald tem um ataque cardíaco e morre, deixando-a presa a cama, contemplando o seu próprio fim. Em meio a essa situação – que também inclui um cachorro que entrou na casa e começou a comer o corpo do marido –, o subconsciente de Jessie faz com que ela enxergue e converse com o marido (embora ela enxergue o corpo deste caído no chão) e com uma outra versão dela mesma.
Por serem manifestações do subconsciente da protagonista, estes personagens destilam toda a racionalidade característica do diretor. Já no seu primeiro diálogo, o outro Gerald critica a Jessie original por ter perdido tanto tempo gritando por ajuda quando, se atentasse aos fatos, ela saberia que não há como ninguém ajuda-la ali. E todos os diálogos seguintes servem para avaliar as circunstâncias e explorá-las da melhor maneira possível. Porém, a dicotomia entre esses dois outros é bem clara: enquanto um tenta preservar a vida dela, o outro quer que ela desista logo e entregue-se à sua inevitável morte.
É possível fazer uma relação entre a situação ali representada e os conceitos de Id, Ego e Superego, que são as três partes da mente, conforme proposto por Freud dentro da teoria psicanalítica. Para Freud, o Id é ligado às forças instintivas e ao princípio do prazer; o Superego é a consciência moral e seque o princípio do dever; e o Ego é o produto final, a parte consciente da mente que segue o princípio da realidade. Desta forma, Jessie (Ego) recebe informações e impulsos contrários do marido (o Id), que quer que ela se entregue à morte, e da sua outra versão (Superego), que quer que ela sobreviva, e precisa escolher qual caminho tomar, qual “conselho” seguir.
Curiosamente, esse cenário que ela criou na sua cabeça encontra reflexo no próprio relacionamento com Gerald e na maneira como ele a tratava – como é dito em uma cena, as algemas foram colocadas muito antes de eles irem para aquela casa. Remexendo um pouco mais nas lembranças, ficamos sabendo que seu problema é ainda anterior, e relaciona-se com um trauma da infância. Com isso, passado e presente, realidade e fantasia, se misturam nesse momento derradeiro da protagonista. E nesse caso, a direção de fotografia de Michael Fimognari (também de Ouija: Origem do Mal) desempenha um papel fundamental.
Hábil ao explorar o ambiente limitado onde se passa a maior parte da narrativa, Fimognari brinca com as imagens que se formam na escuridão daquele quarto e concebe uma belíssima sequência envolvendo um eclipse, na qual toda a imagem é coberta de vermelho – o que, por sua vez, tem a sua relação com sangue e mais especificamente, com menstruação. Essa mesma luz vermelha é vista ao longo do terceiro ato, demonstrando não apenas o trauma daquele ato, como as sequelas não visíveis que se arrastaram ao longo de toda a vida – algo explicitado quando a personagem adulta se encontra com a sua versão mais jovem, ambas banhadas pelo sol vermelho.
Aliás, essa conexão entre passado e presente é notável na maneira como o diretor – que também cuidou da montagem – cria rimas visuais entre as cenas. Num momento passado na sua infância, percebemos que a jovem Jessie se deita na cama com os braços esticados, na mesma posição que ela se encontra quando adulta. Assim, fica claro que o objetivo de Mike Flanagan é explorar os dramas e os traumas da protagonista, em vez de apelar para um jump scares. Não que o longa não tenha cenas assustadoras, ele tem (a imagem pavorosa do moonlight man não sai da minha cabeça), mas a proposta aqui é outra. E é isso que faz Jogo Perigoso um excelente filme.
Título original: Gerald’s Game
Gênero: Terror
País: EUA
Duração: 103 min.
Ano: 2017
Direção: Mike Flanagan
Roteiro: Mike Flanagan e Jeff Howard, baseado no livro de Stephen King
Elenco: Carla Gugino, Bruce Greenwood, Chiara Aurelia, Carel Struycken, Henry Thomas, Kate Siegel, Adalyn Jones, Bryce Harper.