Crítica | Reality

Pessoalmente, nunca consegui entender a fascinação das pessoas por reality shows no estilo de Big Brother. O conceito de gastar o meu tempo para observar a rotina de outras pessoas soa no mínimo desnecessário. Entretanto, é inegável que tais programas são verdadeiros fenômenos  o que sugere que o gosto da maioria é bastante diferente do meu –, continuando em alta até hoje e criando cada vez mais sub-celebridades que, mesmo depois de saírem da “casa”, fazem de tudo para se manterem sob os holofotes.

Curiosamente (ou não), os únicos veículos que ainda se prezam em dar atenção a essas pessoas são justamente aqueles tabloides de fofocas especializados em observar a rotina alheia. De certa maneira, isso coloca o ex participante em um novo estado de observação, tornando a linha entre espetáculo e realidade cada vez mais tênue. E é sobre essa mistura que fala Reality, novo longa de Matteo Garrone.

Escrito pelo próprio Garrone, em parceria com Ugo Chiti, Maurizio Braucci e Massimo Gaudioso (seus parceiros também em seu filme anterior, Gomorra), o roteiro acompanha a vida de Luciano (Aniello Arena), um simples pai de família que ganha a vida como peixeiro e completa a renda da casa realizando pequenos golpes. Certo dia, influenciado pelos filhos, ele se inscreve para a edição italiana do Big Brother. Ao ser chamado para uma nova seleção, Luciano fica convencido de que será um dos integrantes da casa e é só questão de tempo até ser chamado.


Aguardando ansiosamente o telefonema dos responsáveis pelo show, ele logo passa a suspeitar que a espera é, na verdade, um teste de caráter organizado pelo programa para seus mais promissores candidatos. E não demora muito para que ele se convença de que já está sendo vigiado, tendo então que mudar suas atitudes e sua rotina caso queira ficar famoso igual a Enzo (Raffaele Ferrante), participante de uma edição anterior que hoje vive de aparições em festas e eventos.

Fazendo abertamente uma crítica à sociedade contemporânea e sua idolatria a ídolos vazios, que nada têm a oferecer (o próprio bordão “never give up” de Enzo é tão artificial quanto ele), o cineasta apresenta uma realidade onde maior ambição de alguém é fazer parte de um programa desses. É a ideia de ser famoso por ser famoso, e não como consequência de algo – um talento, por exemplo. Não por acaso, Luciano se torna figura invejável em sua comunidade simplesmente por ter sido chamado para um “segundo turno” das eliminatórias, já que, na cabeça dos outros, ele está mais próximo da realização do sonho do que eles jamais estiveram (inclusive um fã clube já começa a ser organizado). O que justifica então a paranoia que toma conta dele à medida que o tempo passa e o telefona não toca, visto que agora não se trata mais de uma realização pessoal, mas de uma fantasia coletiva.


Utilizando uma paleta de cores quentes, o diretor de fotografia Marco Onorato (também de Gomorra) ilumina os ambientes modestos de maneira alegre, ressaltando assim o estado de espírito daqueles personagens. E, investindo em diálogos sobrepostos, Garrone não só dá naturalidade às falas como também ajuda a criar um clima “familiar” ao redor do protagonista. E ao mostrar Luciano menosprezando a vida que levava em meio a essa idealização de fama e fortuna, é notável a gradativa mudança psicológica que ele sofre durante a projeção.


E é incrível a entrega de Arena ao papel principal. Sua atuação é extremamente convincente e une, de maneira primorosa, os trejeitos de uma pessoa simples mas feliz (que inclusive se traveste em festas para alegrar os amigos) com os olhares desconfiados de alguém tomado pela paranoia (como na cena envolvendo o grilo). E o mais impressionante é ver alguém com nenhuma formação profissional e com um passado igual ao dele (vide observação final) carregar nas costas uma narrativa tão pesada com tamanha facilidade.


Garrone ainda reforça sua crítica social quando mostra Luciano fazendo caridade não por vontade própria, mas pela “necessidade” de parecer altruísta aos olhos dos jurados que o perseguem (afinal, na sociedade contemporânea, até para fazer o bem é preciso ter um retorno). E é nessa contradição do ser e do aparentar ser (como é dito em certo momento) que se resume não só o filme, como todo o conceito de reality shows.

Observação: apesar de demonstrar extrema desenvoltura como protagonista dessa história, o ator Aniello Arena não tinha nenhuma experiência profissional antes de estrelar esse filme. Segundo o The GardianArena na verdade é um ex matador da máfia italiana que atualmente cumpre prisão perpétua por triplo assassinato e aprendeu a atuar na companhia de Teatro montada dentro da prisão. O diretor Matteo Garrone conseguiu que ele fosse liberado para as filmagens, mas quando o longa foi exibido em Cannes (onde ele concorria, merecidamente, ao prêmio de melhor ator), Arena não pode participar.

(idem – Drama – Itália/França – 115 min. – 2012)
Direção: Matteo Garrone
Roteiro: Matteo Garrone, Ugo Chiti, Maurizio Braucci e Massimo Gaudioso.
Elenco: Aniello Arena, Loredana Simioli, Nando Paone, Raffaele Ferrante.

Nota: (Excelente) por Daniel Medeiros